sábado, 30 de abril de 2011

Vergiss nicht...


"Lembra-te que és personagem de um drama, de quem dispõe o Encenador. Se ele quer uma peça curta, curta será. Se a quer longa, longa há-de ser. Se quiser que desempenhes o papel de um mendigo, mesmo esse deverás desempenhar com dignidade. E o mesmo para um doido, um general ou um pobre homem. Apenas isso te compete: desempenhar com agrado o papel que te foi destinado. Escolhê-lo, isso cabe a outrem."

Epicteto, A arte de viver, Lisboa: Edições Sílabo, 2007, p. 37

Und es war damals ein süsser Blick...



"Mas vai-se embora um dia a Primavera alada,
Aves d'emigração, voam as ilusões
E a dor soluça em nós, trágica e desgrenhada,
Igual às árvores batidas dos tufões.
E tudo em nós relembra a morta natureza
Amortalhada pela neve dos Janeiros:
As folhas caem como um pranto da devesa,
Não cantam aves nem há rosas nos canteiros;
O sol não veste d' oiro os escalvados montes,
Anda a névoa a forrar de crepe todo o céu,
E os gemidos do vento e os soluços das fontes
São como a grande voz dum sonho que morreu."

Rodrigo Solano, Fumo, ed. act., Penafiel: Câmara Municipal de Penafiel, 2010, p. 115

quarta-feira, 27 de abril de 2011

Aus der Erinnerungen...



"Seguramente não sou eu
Ou antes: não é o ser que eu sou, sem finalidade e sem história.
É antes uma vontade indizível de te falar docemente
De te lembrar tanta aventura vivida, tanto meandro de ternura
Neste momento de solidão e desmesurado perigo em que me encontro.
Talvez seja o menino que um dia escreveu um soneto para o dia de teus anos
E te confessava um terrível pudor de amar, e que chorava às escondidas
Porque via em muitos dúvidas sobre uma inteligência que ele estimava genial.
Seguramente não é a minha forma.
A forma que uma tarde, na montanha, entrevi, e que me fez tão tristemente temer minha própria [poesia.
É apenas um prenúncio do mistério
Um suspiro da morte íntima, ainda não desencantada...
Vim para ser lembrado
Para ser tocado de emoção, para chorar
Vim para ouvir o mar contigo"


Vinicius de Moraes, Antologia Poética, Lisboa: Publicações D. Quixote, 2001, pp. 109-110

segunda-feira, 25 de abril de 2011

Und er sprach zu mir...



"- Eu não faço milagres. Se algum fiz, que não sei, ou se algum faço um dia, será o Senhor a fazê-lo, e eu apenas um humilde instrumento da Sua graça. Mas de uma coisa podes ficar seguro: o milagre far-se-á, mas quando Ele o quiser e do modo que Ele o quiser. Tudo o que nos rodeia é um milagre, a água fresca desta fonte, as flores do caminho, e até a dor da menina, que sofre como sofreu Cristo, e quem sofre aproxima-se d'Ele através do seu sofrimento e terá parte maior na sua glória. Tem esperança; se Deus não descuida os animais do bosque, menos descuidará esta inocente que sofre. Quiçá o milagre já tenha sido feito e os nossos olhos não se tenham apercebido."

Basilio Losada, A Peregrina, Lisboa: Editorial Teorema, 2001, pp. 158

domingo, 24 de abril de 2011

Ostern...



"Há muito tempo que eu não ouvia uma serenata. Ouvi-a ontem, já noite alta. Não para mim, que não mereço mais cantor, modinha ou violão, ao pé de minha janela, mas para a filha mais nova de Nhozinho Sá, dois sobrados adiante do nosso, aqui mesmo no Largo da Matriz. Entreabri a rótula, fiquei olhando. A Lua, agora, nasce tarde, e já estava por cima da igreja. Não vi as horas. Devia passar da meia-noite. Silêncio. A luz a escorrer das árvores, dos telhados, do beiral dos mirantes. E como me veio, de repente, uma vontade imensa de chorar, cerrei de manso a janela, deitei-me. Da cama, fiquei a olhar o Cristo do oratório, à luz do pedacinho de vela do castiçal, perguntando a Nosso Senhor por que isto aconteceu comigo?"

Josué Montello, Noite sobre Alcântara, Livros do Brasil: Lisboa, 1984, p. 183-184

sábado, 23 de abril de 2011

Nur Mut!



"De repente esta sensação terrível de que ficarei sozinha o resto da vida. O sobrado pareceu-me maior do que o Convento do Carmo. E eu a andar por estas salas, quartos e corredores, sem ter uma pessoa com quem falar."

Josué Montello, Noite sobre Alcântara, Livros do Brasil: Lisboa, 1984, p. 143

quinta-feira, 21 de abril de 2011

Meine Träne...



"Pelo fim da tarde, quando ela se foi, enchi-me de decisão, e resolvi fazer como Dona Vera, caminhando com os meus pés, firme, entre a janela e o sofá. Deixando de lado a bengala, aventurei o passo, com toda a força de vontade de que sou capaz, e tive a impressão instantânea de que andaria, mas veio-me o medo de cair. Antes que o equilíbrio me faltasse, segurei-me na folha da porta, e novamente me apoiei na bengala. Chegarei um dia a dispensá-la, como quer Dona Vera? Hoje, na verdade, já tenho mais firmeza na perna insegura. Mesmo a dor, que me subia do calcanhar para a coxa, já não me castiga tanto. Mas a bengala como que me completa. Por vezes, ao espelho, quando me olho de corpo inteiro, sinto que ela já faz parte de minha pessoa." 

Josué Montello, Noite sobre Alcântara, Livros do Brasil: Lisboa, 1984, p. 192 

sábado, 9 de abril de 2011

Ein Wunsch...


"Amor de mis entrañas, viva muerte,
en vano espero tu palabra escrita
y pienso, con la flor que se marchita,
que si vivo sin mí quiero perderte.

El aire es inmortal. La piedra inerte
ni conoce la sombra ni la evita.
corazón interior no necesita
la miel helada que la luna vierte.

Pero yo te sufrí. Rasgué mis venas,
tigre y paloma, sobre tu cintura
en duelo de mordiscos y azucenas.

Llena, pues, de palabras mi locura
o déjame vivir en mi serena
noche del alma para siempre oscura."


Federico García Lorca , Obra Poética Completa, Martins Fontes: São Paulo, 2002, p.648

sábado, 2 de abril de 2011

Es reicht jetzt...



"Estou cansado, é claro,
Porque, a certa altura, a gente tem que estar cansado.
De que estou cansado, não sei:
De nada me serviria sabê-lo,
Pois o cansaço fica na mesma.
A ferida dói como dói
E não em função da causa que a produziu.
Sim, estou cansado,
E um pouco sorridente
De o cansaço ser só isto —
Uma vontade de sono no corpo,
Um desejo de não pensar na alma,
E por cima de tudo uma transparência lúcida
Do entendimento retrospectivo...
E a luxúria única de não ter já esperanças?
Sou inteligente; eis tudo.
Tenho visto muito e entendido muito o que tenho visto,
E há um certo prazer até no cansaço que isto nos dá,
Que afinal a cabeça sempre serve para qualquer coisa."

Álvaro de Campos, Estou cansado, in http://www.jornaldepoesia.jor.br/facam62.html