domingo, 30 de setembro de 2012

Selbstportrait



"Este que vês, de cores desprovido,
o meu retrato sem primores é
e dos falsos temores já despido
em sua luz oculta põe a fé.

Do oculto sentido dolorido,
este que vês, lúcido espelho é
e do passado o grito reduzido,
o estrago oculto pela mão da fé.

Oculto nele e nele convertido
do tempo ido escusa o cruel trato,
que o tempo em tudo apaga o sentido;
 
E do meu sonho transformado em acto,
do engano do mundo já despido,
este que vês, é o meu retrato."


Ana Hatherly, A Idade da Escrita, Lisboa, Edições Tema, 1998

quinta-feira, 27 de setembro de 2012

Morgen...




"- Não vejo nada que infunda pavor e apostava tudo como amanhã teremos um lindo dia."

M. Teixeira Gomes, Maria Adelaide, Lisboa: Bertrand Editora, 1992, p. 51

terça-feira, 25 de setembro de 2012

Veränderungen



"O mundo quando não estamos a olhar: as paisagens
mudam de lugar, vão mudando o mundo. Quando
olhamos só os vestígios ficam
da mudança. E não sabemos antes a figura
em que pouco se demoram as paisagens. Só o poema
a dá enigmática e evidente."

Manuel Gusmão, A Terceira Mão, Lisboa: Editorial Caminho, 2007, p. 46

domingo, 23 de setembro de 2012

Er



"O que nele amava não se poderia realizar como uma estrela no peito - sentira tantas vezes o seu próprio coração como uma dura bolha de ar, como um cristal intraduzível. Sobretudo o que nele amava, tão pálido e malicioso, era de uma qualidade impossível, pungente como um agudo desejo ridículo (...). Pensou com surpreendente clareza, usando para si mesma quase palavras: eu o amo como ao que faz bem, ao que dá bem-estar mas não ao que está fora do corpo e que jamais o apaziguará e que se quer alcançar mesmo com a desilusão (...). Doía-lhe porém pensar assim, tanto era terno, pressuroso e cheio de vida alvoroçada ele existir nela, respirar, comer, dormir e não saber que ela poderia pensar assim dele."
 
Clarice Lispector, O Lustre, Lisboa: Relógio D' Água, 2012, p. 190

quinta-feira, 20 de setembro de 2012

Nein!



    "- Daniel ..., murmurou Virgínia, nem com você eu posso falar?
      - Não, disse ele supreendido com a própria resposta.
     Hesitaram um instante, delicados, quietos. Não, não!..., negava ela o medo que se aproximava, como para ganhar tempo antes de se precipitar. Não, não, dizia evitando olhar ao redor. A noite descera, a noite descera. Não se precipitar! mas de repente algo não se conteve e principiou a suceder... Sim, ali mesmo iam-se erguer os vapores da madrugada doentia, pálida, como um fim de dor - enxergava Virgínia de súbito calma, submissa e absorta. Cada galho seco se esconderia sob uma luminosidade de caverna. Aquela terra além das árvores, castrada nos brotos pela queimada, seria vista através da mole neblina, enegrecida e difícil como através de um passado - via ela agora quieta e inexpressiva como sem memória."
 
Clarice Lispector, O Lustre, Lisboa: Relógio D' Água, 2012, p. 11


domingo, 16 de setembro de 2012

Sonst nichts...



      "Sim: não sou mais do que um reflexo dessa tarde, sobrevivendo aos dias e às noites.
    Um eco de todas as vozes e de todos os murmúrios; um reflexo de todas as nuvens e de todas as estrelas; uma aparência revelada de todas as misteriosas aparições, eis o Homem!"


Teixeira de Pascoaes, O Bailado, Colecção "Obras Completas de Teixeira de Pascoaes", organização de Jacinto do Prado Coelho, volume VIII, Livraria Bertrand: Amadora, 1973, p. 36

quinta-feira, 13 de setembro de 2012

Geburtstag



"Era seu destino, uma característica, quer o desejasse quer não, desembocar assim numa ponta de terra que o mar ia lentamente devorando, e aí ficar, como uma ave marinha desolada, só."
 
Virgínia Woolf, Rumo ao farol, Lisboa: Relógio D'Água, 2008, p. 41

quarta-feira, 12 de setembro de 2012

Geheimnis






"Se alguém me tivesse mostrado o futuro, decerto muitas lágrimas teriam sido evitadas. Mas viver sem lágrimas não é viver. O sentido da montagem humana só vem se fizermos como Clarice Lispector e formos ao encontro do que nos espera, na certeza de que tudo na vida tem o estigma da caducidade. Só amar não acaba."
 
Fredrico Lourenço, Amar não acaba, Lisboa: Edições Cotovia, 2004, p. 115

domingo, 9 de setembro de 2012

Begreifen



"Passo a minha mão pela tua cabeça,
recurvamente, atentamente, e só com os dedos brandos,
olhando-a como passa e vendo onde passou.

Quero tanto saber o que tu pensas."

Jorge de Sena, Antologia Poética, Lisboa: Edições Asa, 2001, p. 81

sábado, 8 de setembro de 2012

Preis der Eile


     "O castigo de ser feliz é o tempo passar depressa. O castigo de ser triste é o tempo não passar. A recompensa de não conseguir ser nem triste nem feliz, permanecendo indiferente, é o tempo passar devagar. Se todos os dias nascemos - os que temos a sorte de amar, mais a suspeita de sermos, talvez, amados - todos os dias morremos cedo de mais.
      Se me perguntassem quanto tempo passei com a Maria João, nos últimos 15 anos, eu teria muitas dificuldades em não responder 15 dias ou até 15 minutos, por não saber mostrar e justificar até esse pouco tempo que passámos.
      Ainda ontem acordámos às oito da manhã. Mas, às sete da tarde, apesar de termos passado o dia juntos, pareceu-nos que os tinham roubado o dia inteiro; que tínhamos acabado de nos conhecermos. (...)
      O tempo, a ocasião e a sorte parecem ser coisas parecidas - mas são coisas muito diferentes. O ponto de vista, conforme o lugar onde se esteja e de onde se veja, importa mais do que o sentimento ou o juízo.
      É sinal de ser-se feliz achar que o tempo nos foi roubado e que é pouco o tempo que tivemos e pouco o tempo que nos resta.
      Não se pode dar importância de mais ao presente, seja amoroso, político ou financeiro. A pressa não é uma escolha: é uma consequência. E um preço."
 
 
Miguel Esteves Cardoso, in Jornal Público (in 8 de Junho de 2011)
    

quinta-feira, 6 de setembro de 2012

Sehnsucht


"Não me verga a velhice nem o peso do crâneo
Mas os olhos cansados na dor de te não ver.
O chão tornou-se a última paisagem.
No mais longínquo da terra te levantas
E vejo erguer-se a poeira dos teus pés."

Daniel Faria, "Últimas Explicações", in Poesia, Lisboa: Assírio & Alvim, 2012, p. 98

quarta-feira, 5 de setembro de 2012

Eine Metapher


 
 
 
"Quando moço, ele construira sobre o Bosque teorias complicadas e consideráveis. E sustentava, com os olhos rutilantes de fanático, que no Bosque a Cidade cada tarde ia retemperar salutarmente a sua força, recebendo, pela presença das suas Duquesas, das suas Cortesãs, dos seus Políticos, dos seus Financeiros, dos seus Generais, dos seus Académicos, dos seus Artistas, dos seus Clubistas, dos seus Judeus, a certeza consoladora de que todo o seu pessoal se mantinha em número, em vitalidade, em função, e que nenhum elemento da sua grandeza desaparecera ou deperecera. 'Ir ao Bois' constituía então para o meu Príncipe um acto de consciência. E voltava sempre confirmando com orgulho que a Cidade possuía todos os seus astros, garantindo a eternidade da sua luz!
    Agora, porém, era sem fervor, arrastadamente, que ele me levava ao Bosque, onde eu, aproveitando a clemência de Abril, tentava enganar a minha saudade de arvoredos. (...) Mas logo que passávamos as grades douradas do Bosque, e penetrávamos na Avenida das Acácias, e enfiávamos na lenta fila dos trens de luxo e de praça, sob o silêncio decoroso, apenas cortado pelo tilintar dos freios e pelas rodas vagarosas esmagando a areia - o meu Príncipe emudecia, molemente engelhado no fundo ds almofadas, de onde só despegava a face para escancarar bocejos de fartura."
 
Eça de Queirós, A cidade e as serras, Biblioteca Ulisseia de Autores Portugueses, 1987, pp. 62-3 

segunda-feira, 3 de setembro de 2012

In schweren Tagen



"Uma alteração ínfima hoje leva-nos a um amanhã absolutamente diferente. Existem grandes recompensas para aqueles que escolhem os caminhos elevados e difíceis, mas essas recompensas são escondidas por anos. Cada opção é feita numa cegueira indiferente, sem qualquer garantia do mundo que nos rodeia. A única forma de evitar todas as opções assustadoras é abandonar a sociedade e tornar-se um eremita e isso é uma opção assustadora. O carácter resulta de seguirmos o nosso mais elevado sentido do bem, de confiar em ideias sem se ter a certeza de que resultam. Um dos desafios da nossa aventura na terra é erguermo-nos acima dos sistemas da morte -– guerra, religiões, nações, destruições –- recusarmo-nos a fazer parte deles, exprimindo em contrapartida os seres mais elevados que sabemos ser.
Por mais preparados que estejamos, ou mais merecedores que sejamos, só atingiremos uma vida mehor quando a imaginarmos por nós próprios e nos permitirmos tê-la."

Richard Bach, Um, Publicações Europa-América: Mem Martins, 1988, p. 77 

domingo, 2 de setembro de 2012

Neuer Anfang




"Somos feitos da matéria com que se tecem os sonhos,
E é um sono que coroa a nossa breve vida."

William Shakespeare, "A Tempestade, seguido de O Mar e o Espelho de W. H. Auden", Cotovia: Lisboa, 2009, p. 113