terça-feira, 31 de dezembro de 2013

Guck nicht!



"Não olhes.
O mundo está prestes a rebentar.

Não olhes.
O mundo está prestes a despejar a sua luz
E a lançar-nos no abismo das suas trevas,
Aquele lugar negro, gordo e sem ar
Onde nós iremos matar ou morrer ou dançar ou chorar
Ou gritar ou gemer ou chiar que nem ratos
A ver se conseguimos de novo um posto de partida."

Harold Pinter. Várias Vozes. Famalicão: Quasi Edições, 2006, p.174

segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

Deformität




"Sabia que se não superasse o seu defeito, que a obrigara a usar um aparelho de aço até aos dez anos, ia ter que suportar que a reduzissem a uma matéria inanimada, como um fantoche. Foi desenvolvendo o espírito de exibição escandalosa, para proibir ameaça da maldade humana pronta a lançar-se sobre o objecto de riso, a sua deformidade.
    Aos dez anos, os médicos mandaram retirar o aparelho de tortura. Ema não quis olhar a perna, ligeiramente mais delgada e mais curta."

Agustina Bessa-Luís. Vale Abraão. Lisboa: Guimarães Editores, 2005, p. 223

domingo, 29 de dezembro de 2013

Einsamkeit



" Sea beyond sea, sand after sweep of sand,
Here ivory smooth, here cloven and ridged with flow
Of channelled waters soft as rain or snow,
Stretch their lone length at ease beneath the bland
Grey gleam of skies whose smile on wave and strand
Shines weary like a man's who smiles to know
That now no dream can mock his faith with show,
Nor cloud for him seem living sea or land.
Is there an end at all of all this waste,
These crumbling cliffs defeatured and defaced,
These ruinous heights of sea-sapped walls that slide
Seaward with all their banks of bleak blown flowers
Glad yet of life, ere yet their hope subside
Beneath the coil of dull dense waves and hours?"

A. C. Swinburne, Poemas, Relógio D' Água, 2005, p. 164

sábado, 28 de dezembro de 2013

Eines Tages...


 
    "Berta, a Grande, nunca mais esqueceria aquele olhar azul do anão Gustavo, e pensou que um dia também ela poderia ser feliz. Um dia.
     Mas a felicidade nunca mais chegava (...)."
 
 
Cuca Canals, Berta a Grande, Editorial Teorema: Lisboa, 1997, 37

quarta-feira, 25 de dezembro de 2013

In weiter Ferne, so nah!




"Aqui não precisas de me procurar
para me encontrares, que eu estou,
omnipresente, em todo o chão que pisas,
duplicando a tua sombra,
deixando um rasto de brisa,
um aroma de urze na marca dos teus passos.
Com esta roupa visitaremos os pátios,
os átrios de dança e do encantamento.
As nuvens aninhadas atrás da lua,
na olorosa paz da madrugada,
são o mapa das errâncias da fala
enquanto o coração, indefeso, capitula. "


José Jorge Letria, in "Capela dos Ócios", http://www.citador.pt

Und es ist wieder Weihnachten!



"Ignoro se poderemos curar-nos de certas coisas. No fundo, desabafar talvez não seja um remédio assim tão eficaz. Talvez, pelo contrário, desabafar sirva para alimentar as feridas, como ao remexermos as brasas de uma fogueira a fim de podermos atear o lume quando assim o desejamos."
 
 
Philippe Claudel, O Relatório de Brodeck, Edições Asa: Porto, 2009: 203

sábado, 21 de dezembro de 2013

So einfach...





"O tempo passa? Não passa
no abismo do coração"


Carlos Drummond de Andrade, in 'Amar se Aprende Amando'

segunda-feira, 16 de dezembro de 2013

Abschluss




"Quanto a mim…
O amor passou. Mas conservo-lhe uma affeição inalteravel, e não esquecerei nunca - nunca, creia - (...) a sua ternura, a sua dedicação, a sua indole amoravel. Pode ser que me engane, e que estas qualidades, que lhe attribúo, fossem uma illusão minha; mas nem creio que fossem, nem, a terem sido, seria desprimor para mim que lh’as attribuisse. (...)
Peço que não faça como a gente vulgar, que é sempre reles; que não me volte a cara quando passe por si, nem tenha de mim uma recordação em que entre o rancor. Fiquemos, um perante o outro, como dois conhecidos desde a infancia, que se amaram um pouco quando meninos, e, embora na vida adulta sigam outras affeições e outros caminhos, conservam sempre, num escaninho da alma, a memoria profunda do seu amor antigo e inutil."


Fernando Pessoa, Cartas de Amor a Ophélia Queiroz. Organização, posfácio e notas de David Mourão-Ferreira. Guimarães Editores: Lisboa. 2009: 88-89

terça-feira, 10 de dezembro de 2013

Dieser Tag (Ein Jahr)



"Não saibas: imagina...
Deixa falar o mestre, e devaneia...
A velhice é que sabe, e apenas sabe
Que o mar não cabe
Na poça que a inocência abre na areia.

Sonha!
Inventa um alfabeto
De ilusões...
Um á-bê-cê secreto
Que soletres à margem das lições...

Voa pela janela
De encontro a qualquer sol que te sorri!
Asas? Não são precisas:
Vais ao colo das brisas,
Aias da fantasia."


Miguel Torga, "Instrução Primária", in Antologia Poética, Coimbra: Edição do Autor, 1994, p. 367

terça-feira, 3 de dezembro de 2013

Erklärung



"Percebo hoje a razão por que Auden disse que qualquer casamento duradoiro é mais apaixonante do que a mais acesa das paixões. Guardar é um trabalho custoso. As coisas têm uma tendência horrível para morrer. Salvá-las desse destino é a coisa mais bonita que se pode fazer. Haverá verbo mais bonito do que «salvaguardar»? É fácil uma pessoa bater com a porta, zangar-se e ir embora. O que é difícil é ficar. (…)
Preservar é defender a alma do ataque da matéria e da animalidade. Deixadas sozinhas, as coisas amarelecem, apodrecem e morrem. Não há nada mais fácil do que esquecer o que já não existe. Começar do zero, ao contrário do que sempre pretenderam todos os revolucionários do mundo, é gratuito. Faz com que não seja preciso estudar, aprender, respeitar, absorver, continuar. Criar é fácil. As obras de arte criam-se como as galinhas. O difícil é continuar."


Miguel Esteves Cardoso, in 'As Minhas Aventuras na República Portuguesa'

domingo, 1 de dezembro de 2013

Wohin?



"Eu venho do sonho e fujo da vida.
Errei no caminho para a paz prometida.

Só sei que me chama um canto do mar.
E a nau dos sonhos no céu a varar.

Ó meu capitão da barca perdida
A errar entre o sonho e o engano da vida!"

Natália Correia, O Sol nas Noites e o Luar nos Dias I, Projornal, 1993, p. 19