quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013

Gespräch



"que nada peturbe o teu percurso, constrói a tua obra, é isso a única coisa que conta. é essa a única maneira de fulgurares acima de qualquer banalidade. não tem mal elevares-te , é próprio dos que se sabem grandes (...) não tem mal desejares andar sobre as águas ou qualquer outra coisa. o mundo pertence-te, faz dele o que quiseres, aniquila-o, recria-o, despede-te dele. (...) não tenhas medo, avança sempre, mesmo que te encontres sozinho à beira do rio que te consumirá os ossos. a morte assusta menos se a tiveres desejado e possuído a vida. que nada perturbe a tua obra, porque só nela sobreviverás. (?)"
Al Berto, Diários, Lisboa: Assírio & Alvim, 2012, p. 277

sábado, 23 de fevereiro de 2013

Warten

 

"sento-me em frente ao mar e aguardo uma ressurreição, um regresso qualquer ao corpo, ao coração, aos gestos, com sentido, das mãos, aos olhares cúmplices com as coisas vivas que me rodeiam, aguardo pacientemente que a vida reentre em mim e provoque um sismo, um estremecr de claridades, espero que se defina um caminho, uma direcção, um indício qualquer que me indique para onde devo ir, para onde devo virar o meu viver, a minha solidão repovoada. terrível silêncio este, envolvo-me nele como um /disfarce*/ esburacado, no entanto é a lucidez deste silêncio que me diz que ainda estou vivo."
 
Al Berto, Diários, Lisboa: Assírio & Alvim, 2012, p. 288 

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2013

Eines Tages...



"Nove anos procurou Blimunda. Começou por contar as estações, depois perdeu-lhes o sentido. Nos primeiros tempos calculava as léguas que andava por dia,quatro, cinco, às vezes seis, mas depois confundiram-se-lhe os números,não tardou que o espaço e o tempo deixassem de ter significado, tudo se media em manhã, tarde, noite, chuva, soalheira, granizo, névoa e nevoeiro, caminho bom, caminho mau, encosta de subir, encosta de descer, planície, montanha, praia do mar, ribeira de rios, e rostos, milhares e milhares de rostos, rostos sem número que os dissesse, quantas vezes mais os que em Mafra se tinham juntado, e de entre os rostos, os das mulheres para as perguntas,os dos homens para ver se neles estava a resposta, e destes nem os muito novos nem os muito velhos, alguém de quarenta e cinco anos quando o deixámos além no Monte Junto, quando subiu aos ares, para sabermos a idade que vai tendo basta acrescentar-lhe um ano de cada vez, por cada mês tantas rugas, por cada dia tantos cabelos brancos. Quantas vezes imaginou Blimunda que estando sentada na praça duma vila, a pedir esmola, um homem se aproximaria e em lugar de dinheiro ou pão lhe estenderia um gancho de ferro, e ela meteria a mão ao alforge e de lá tiraria um espigão da mesma forja, sinal da sua constância e guarda, Assim te encontro, Blimunda, Assim te encontro, Baltasar, Por onde foi que andaste em todos estes anos, que casos e misérias te aconteceram, Diz-me primeiramente de ti, tu é que estiveste perdido,Vou-te contar e ficariam falando até ao fim do tempo."
 
José Saramago, Memorial do Convento, Lisboa: Editorial Caminho, 1982, pp. 349-350

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

Die Welt ist Trug


 
 
"Anders sein und anders scheinen,
Anders reden, anders meinen,
Alles loben, alles tragen,
Alles heucheln, stets behagen,
Alles Winde Segel geben,
Bös' und Guten dienstbar leben,
Alles Tun und alles Dichten
Bloss auf eignen Nutzen richten:
Wer sich dessen will befleissen,
Kann politisch heuer heissen."
 
Friedrich von Logan, "Hetige Weltkunst", in O Crdo e a Rosa. Poesia do Barroco Alemão, Lisboa: Assírio e Alvim, 2002: 28

domingo, 17 de fevereiro de 2013

Gespräch zum Valentinstag




"No velho parque deserto e gelado
Duas formas passaram há bocado.

Com os olhos mortos e os lábios moles,
Mal se ouvem, a custo, as suas vozes.

No velho parque deserto e gelado
Dois espectros evocaram o passado.

— Recordas-te do nosso êxtase antigo?
— Por que razão acha que ainda consigo?

— Bate, ao ouvires meu nome, o coração?
Vês ainda a minha alma em sonhos? — Não.

— Ah! bons tempos de prazer indizível
Unindo as nossas bocas! — É possível.

— Como era azul, o céu, e grande a esperança!
— Mas é prò negro céu que hoje se lança.

Lá caminhavam plas aveias loucas
E só a noite ouviu as suas bocas."


Paul Verlaine, "Poemas Saturnianos e Outros", Lisboa: Assírio & Alvim, 1994, p. 155

sábado, 16 de fevereiro de 2013

Ich habe an dich gedacht



"O que é o tempo? O senhor sabe? O tempo passa, mas volta. Por que não havia de voltar, se o tempo é uma realidade, que eu sinto, que o senhor sente, que todo o mundo sente? Isso mesmo eu disse ao doutor Juliano. Por que só a nossa memória segura o tempo, se apossa do tempo? É porque o tempo existe. Como existe o espaço. Como tudo existe. Tudo o que foi criado existe. Não desaparece.  Tudo o que Deus cria, conserva."
 
"Trato de viver cada novo dia como uma graça de Deus. Tranquila. Conformada. Atiçando minhas saudades, como quem sopra brasa no fogão. Não quero mais do que isso."
 
Josué Montello, O Baile da Despedida, Lisboa: Edição Livros do Brasil, 2001: 120, 138 

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013

Jeder Tag

 


"como posso dizer (-te)
sem me dizer

sem me esvair
de ti

sem me inundar
em tua ausência"

Carlos Frias de Carvalho, luz da água, Lisboa: Edição Babel, 2011 p. 56

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013

Weil morgen Valentinstag ist...



"A dignidade no amor
é amar somente,
que nele entramos
limpos, solidários,
não donatários
de capitanias.

A dignidade no amor
não anda às cegas.

Está na inquirição
onde assumimos
a nossa punição
de sermos livres."

Carlos Nejar, "Heráldica", in Antologia Poética de Carlos Nejar, Editorial Pergaminho, 2003: 67-8

terça-feira, 12 de fevereiro de 2013

Auf ein Wunder warten...



"E, entrando no barco, passou para  outro lado, e chegou à sua cidade. E eis que lhe trouxeram um paralítico.
E Jesus, vendo a fé deles, disse ao paralítico: Filho, tem bom ânimo, perdoados te são os teus pecados.
E eis que alguns dos escribas diziam entre si: Ele blasfema.
Mas Jesus, conhecendo os seus pensamentos, disse: Por que pensais mal em vossos corações?
Pois, qual é mais fácil? dizer: Perdoados te são os teus pecados; ou dizer: Levanta-te e anda?
Ora, para que saibais que o Filho do homem tem na terra autoridade para perdoar pecados (disse então ao paralítico): Levanta-te, toma a tua cama, e vai para tua casa.
E, levantando-se, foi para sua casa.
E a multidão, vendo isto, maravilhou-se, e glorificou a Deus, que dera tal poder aos homens."

Evangelho de S. Mateus 9:1-8

sábado, 9 de fevereiro de 2013

Trauer 2




"desligámos a palavra do seu sangue
entre nós circula apenas um silêncio disfarçado
e um terror que não cuidamos

é possível entrever as lâminas por baixo da voz
ferindo a finíssima pele, a vaga atenção,
os pulsos frios e sem mistério

estendemos as mãos como ramos nus
atravessando o rigor líquido da noite
abrimos os livros, os mapas, os olhos

mas as entrelinhas estão há muito desabitadas"


Vasco Gato, Imo, V.N. Famalicão: Quasi Edições, 2003, p. 46

terça-feira, 5 de fevereiro de 2013

Trauer 1



"Pouco a pouco meu tumulto interior foi-se transformando numa resignação melancólica: eu dava minha alma em troca de nada. Porque não era paz o que eu sentia. Sentia que o meu mundo havia desmoronado e que eu restara de pé como testemunha perplexa e incógnita."

Clarice Lispector, "Quase", in A Descoberta do Mundo , Lisboa: Indícios de Ouro, 2004, p. 39

segunda-feira, 4 de fevereiro de 2013

Und noch vermisse ich dich, O.



"Ainda correm lágrimas pelos
teus grisalhos, tristes cabelos,
na terra vã desintegrados,
em pequenas flores tornados.

Todos os dias estás viva,
na soledade pensativa,
ó simples alma grave e pura,
livre de qualquer sepultura!

E não sou mais do que a menina
que a tua antiga sorte ensina.
E caminhamos de mão dada
pelas praias da madrugada."


Cecília Meireles, in 'Poemas (1942-1959)'

domingo, 3 de fevereiro de 2013

Gespräch 1



"Estou com a idade pousada nas mãos.
Explico-me com dedicação aos berços fundos
onde cada coisa dorme o seu medo de morrer.

Há na tristeza um perigo de terminar:
o eterno outono parece belo
a quem perdeu todas as sementes.

Pergunta-se um nome e ninguém responde.
Onde fica essa ilha a que só chegamos por naufrágio?"

Vasco Gato, Imo, V.N. Famalicão: Quasi Edições, 2003, p. 15

sábado, 2 de fevereiro de 2013

Hier sass ich...




"Uma vez pusera-se a imaginar um país que tivesse a dimensão da sua própria voz, mas desistira, por não saber como se media a voz. No entanto, sabia que no país imaginado a sombra do seu corpo poderia vacilar dentro da solidão, ano após ano, sem que ninguém ousasse insultá-la. Custasse o que custasse, haveria de dar forma a esse país. Transformar o corpo, metamorfosear-se, afastar-se cada vez mais do mundo e dos homens..."
 
Al Berto, "Lunário", Lisboa: Assírio & Alvim, 1999, p. 19

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2013

Langsam...



“Não: devagar.
Devagar, porque não sei
Onde quero ir.
Há entre mim e os meus passos
Uma divergência instintiva.
Há entre quem sou e estou
Uma diferença de verbo
Que corresponde à realidade.

Devagar...
Sim, devagar...
Quero pensar no que quer dizer
Este devagar...
Talvez o mundo exterior tenha pressa demais.
Talvez a alma vulgar queira chegar mais cedo.
Talvez a impressão dos momentos seja muito próxima...

Talvez isso tudo...
Mas o que me preocupa é esta palavra devagar...
O que é que tem que ser devagar?
Se calhar é o universo...
A verdade manda Deus que se diga.
Mas ouviu alguém isso a Deus?”


Obra Poética de Fernando Pessoa, Poemas de Álvaro de Campos, Lisboa: Publicações Europa-América, s. d., pp. 120-1