sexta-feira, 31 de maio de 2013

1930 Stunden


  
   "Eu mesma me surpreendo ao perceber quantas horas por ano tenho para gastar. Capacito-me de que na realidade tenho mais tempo do que penso - e isso significa que vivo mais do que imaginei. Isso se fizermos as contas das horas do dia, da semana, do mês, do ano. Quem fez o cálculo foi um inglês, não sei o seu nome.
   Um ano tem 365 dias - ou seja, 8760 horas. Não é enganoso não, são oito mil setecentos e sessenta horas.
   Deduzam-se oito hora por dia de sono. Agora deduzam-se cinco dias de trabalho por semana, a oito horas por dia, durante 49 semanas (descontando, digamos, o mínimo de duas semanas de férias, e mais uns sete dias de feriado). Deduza duas horas diárias empregadas em condução, para quem mora longe do local de trabalho.
   Nessa base sobram-lhe 1930 horas por ano. Mil novecentas e trinta horas para se fazer o que se quiser ou puder. A vida é mais longa do que a fazemos. Cada instante conta."
 
 
Clarice Lispector, "Horas para gastar", in A Descoberta do Mundo - Crónicas, Lisboa: Relógio d' Água, 2013, pp. 626-7

quinta-feira, 30 de maio de 2013

Müdigkeit 3




"Só quem procura sabe como há dias
de imensa paz deserta; pelas ruas
a luz perpassa dividida em duas:
a luz que pousa nas paredes frias,

outra que oscila desenhando estrias
nos corpos ascendentes como luas
suspensas, vagas, deslizantes, nuas,
alheias, recortadas e sombrias.

E nada coexiste. Nenhum gesto
a um gesto corresponde; olhar nenhum
perfura a placidez, como de incesto,

de procurar em vão; em vão desponta
a solidão sem fim, sem nome algum -
- que mesmo o que se encontra não se encontra."

Fátima Freitas Morna, Poesia de Jorge de Sena, Lisboa: Editorial Comunicação,  1985, p. 97

domingo, 26 de maio de 2013

Können Insekten Schmerz empfinden?



"Se o meu mundo não fosse humano, também haveria lugar para mim: eu seria uma mancha difusa de instintos, doçuras e ferocidades, uma trêmula irradiação de paz e luta: se o mundo não fosse humano eu me arranjaria sendo um bicho. Por um instante então desprezo o lado humano da vida e experimento a silenciosa alma da vida animal. É bom, é verdadeiro, ela é a semente do que depois se torna humano."
 
Clarice Lispector, "Eu me arranjaria", in A Descoberta do Mundo - Crónicas, Lisboa: Relógio d' Água, 2013, p.  579

sexta-feira, 24 de maio de 2013

Im Morgengrauen



"Comemoras o dia
da solidão As palavras
serão esquecidas ou apenas

as temerás mais uma vez e
partirás para um lugar
onde julgas poder sentir o mundo
pulsar na tua pele

afinal imortal Nos olhos
passará o filme aquoso
do que viveste Viverias
de novo esse presente obscuro

tão futuro Já então
por vezes confundias o teu corpo
como o ar ou a água e entregavas
à sua transparência

a paixão
Mas o fogo e a terra são mais
densos Geram víboras
na tarde"

Gastão Cruz, "Paisagem", in Poemas Reunidos, Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1999, pp.  369-370

segunda-feira, 20 de maio de 2013

Zukunftsangst



"Não posso escrever enquanto estou ansiosa ou espero soluções a problemas porque nessas situações faço tudo para que as horas passem  - e escrever, pelo contrário, aprofunda e alarga o tempo. Se bem que ultimamente, por necessidade grande, aprendi um jeito de me ocupar escrevendo, exatamente para ver se as horas passam."
 
Clarice Lispector, "Aprofundamento das horas", in A Descoberta do Mundo - Crónicas, Lisboa: Relógio d' Água, 2013, p.  380

domingo, 19 de maio de 2013

Ein Spiel, sonst nichts...


 
"O que nos salva da solidão é a solidão de cada um dos outros. Às vezes, quando duas pessoas estão juntas, apesar de falarem, o que elas comunicam silenciosamente uma à outra é o sentimento de solidão."
 
Clarice Lispector, "A comunicação muda", in A Descoberta do Mundo - Crónicas, Lisboa: Relógio d' Água, 2013, p.  380

sexta-feira, 17 de maio de 2013

Wertloser Mensch




"Eu sei que o meu desespero não interessa a ninguém.
Cada um tem o seu, pessoal e intransmissível;
com ele se entretém
e se julga intangível.

Eu sei que a Humanidade é mais gente do que eu,
sei que o Mundo é maior do que o bairro onde habito,
que o respirar de um só, mesmo que seja o meu,
não pesa num total que tende para infinito.
 
Eu sei que as dimensões impiedosos da Vida
ignoram todo o homem, dissolvem-no, e, contudo,
nesta insignificância, gratuita e desvalida,
Universo sou eu, com nebulosas e tudo."
 
António Gedeão, "Amostra sem valor", in Obra Completa, Lisboa: Relógio d' Água, 2004, p.  167

segunda-feira, 13 de maio de 2013

Neuer Sonntag



"Um domingo de tarde sozinha em casa dobrei-me em dois para a frente - como em dores de parto - e vi que a menina em mim estava morrendo. Nunca esquecerei esse domingo. Para cicatrizar levou dias. E eis-me aqui. Dura, silenciosa, heroica. Sem menina dentro de mim."
 
Clarice Lispector, "Trechos", in A Descoberta do Mundo - Crónicas, Lisboa: Relógio d' Água, 2013, p.  537

domingo, 12 de maio de 2013

Sonnagsmorgen




"Morreu o grande Guimarães Rosa, morreu meu belo Carlito, filho de meus amigos Lucinda e Justino Martins, morreu meu querido cunhado, o embaixador do Brasil nos Estados Unidos, Mozart Gurgel Valente, morreu o filho do Dr. Neves Manta, morreu uma menina de 13 anos do meu edifício deixando a mãe tonta, morreu o meu tonitruante amigo Marino Besouchet. Desculpem, mas se morre."
 
 
Clarice Lispector, "Desculpem, mas se morre", in A Descoberta do Mundo - Crónicas, Lisboa: Relógio d' Água, 2013, p.  492

quinta-feira, 9 de maio de 2013

Stille 3



"Saudade é um pouco como fome. Só passa quando se come a presença. Mas às vezes a saudade é tão profunda que a presença é pouco: quer-se absorver a outra pessoa toda. Essa vontade de um ser o outro para uma unificação inteira é um dos sentimentos mais urgentes que se tem na vida."
 
Clarice Lispector, "Saudade", in A Descoberta do Mundo - Crónicas, Lisboa: Relógio d' Água, 2013, p.  143

terça-feira, 7 de maio de 2013

Ich weiss...



"Eu disse a uma amiga:
- A vida sempre superexigiu de mim.
Ela disse:
- Mas lembre-se de que você também superexige da vida."

Clarice Lispector, "Sim", in A Descoberta do Mundo - Crónicas, Lisboa: Relógio d' Água, 2013, p.  47

sábado, 4 de maio de 2013

Samstag




"Acho que sábado é a rosa da semana; sábado de tarde a casa é feita de cortinas ao vento, e alguém deseja um balde de água no terraço; sábado ao vento é a rosa da semana. Sábado de manhã é quintal, uma abelha esvoaça, e o vento (...) Foi num sábado (...) só eu sabia que era sábado (...) sinto que é sábado de tarde. Tem sido sábado mas já não é o mesmo. Então eu não digo nada, aparentemente submissa: mas na verdade já peguei as minhas coisas e fui para domingo de manhã. Domingo de manhã também é a rosa da semana. Embora sábado seja muito mais. Nunca vou saber por quê."
 
Clarice Lispector, "Sábado", in A Descoberta do Mundo - Crónicas, Lisboa: Relógio d' Água, 2013, p.  421

sexta-feira, 3 de maio de 2013

Meine Schmerzen



"o que me dói tem um nome que não obedece a mapas:
a memória é um tempo desavindo"

Rui Nunes, Ofício de Vésperas, Lisboa: Relógio D'Água, 2007, p. 56