quarta-feira, 26 de março de 2014

Quelle



"Se soubesse que o calor era sazonal
ter-me-ia espraiado num raio de sol contínuo
deixando-me longamente envolver num casulo de verão
vivendo nas asas de uma qualquer ave migradora
rumando continuamente para o sul
dividindo o tempo entre o mar e a terra em brasa
e assim seria para sempre o estio dos teus olhos
a secura afogada na tua fonte
a onda finda na praia
onde nas tuas mãos de concha
nos teus braços esculpidos de vento
nos teus olhos de marés contínuas
no teu ventre de salitre maduro
me derramaria diluindo-me
em teu corpo de areia"

José Bernardes, Mãos Inquietas, Porto, Edita-me, 2012, p. 51

Leben



"Daqueles que partiram para a estrada do infinito,
Voltou alguém? Que nos conta!?
Nestes dois caminhos de angústia e de desejo,
Não te esqueças de nada porque não regressarás."

Umar-i Khayyam, Ruba'iyat, Lisboa: Assírio & Alvim, 2009: 50

segunda-feira, 24 de março de 2014

Zu deinem Geburtstag


(Amesterdão, 2005)


"Mal nos conhecemos 
Inaugurámos a palavra «amigo».

«Amigo» é um sorriso 
De boca em boca,
Um olhar bem limpo,
Uma casa, mesmo modesta, que se oferece,
Um coração pronto a pulsar
Na nossa mão!

«Amigo» (recordam-se, vocês aí,
Escrupulosos detritos?)
«Amigo» é o contrário de inimigo!

«Amigo» é o erro corrigido,
Não o erro perseguido, explorado,
É a verdade partilhada, praticada.

«Amigo» é a solidão derrotada!

«Amigo» é uma grande tarefa, 
Um trabalho sem fim,
Um espaço útil, um tempo fértil,
«Amigo» vai ser, é já uma grande festa!"

Alexandre O'Neill, Poesias Completas 1951/1986, Lisboa: INCM, 1995, 90

domingo, 23 de março de 2014

Unverständlich



"Guarte sabia que se pode gostar muito duma pessoa antipática e egoísta. Perguntava porque tinha uma espécie de fraqueza pela Serpa, e não obtinha resposta. Mas um dia descobriu que ela conhecia o segredo de aborrecer o maior número de pessoas e de as assustar também. O tédio só podia ser vencido dessa maneira."

Agustina Bessa-Luís. O Concerto dos Flamengos. Lisboa: Guimarães Editores, 2013, p. 71

sábado, 22 de março de 2014

Nebel



"Tudo isto é o sinal de uma perda.
Que fazer com todos estes sinais senão remetê-los como fantasmas para o corpo que abandonaram, que me abandonou?"

Rui Nunes, O Choro é um Lugar Incerto, Lisboa: Relógio D'Água, 2005, p. 85

sábado, 15 de março de 2014

Schmerzlich...



"Provavelmente sabia que nunca mais voltaria a ter momentos daqueles, mas também sabia que é o caminho que é importante e cada passo ao longo dele que conta."

Richard Bach, Um, Publicações Europa-América: Mem Martins, 1988: 229.

sexta-feira, 7 de março de 2014

Heute



     "Foste-te embora (...) e eu fiquei sozinha, a pensar em ti e na tua visita. (...) Lá de fora vinha o ruído do trânsito (...), um ruído de gente e de automóveis apressados, gente que queria voltar para casa, onde estavam os que amavam ou os que se tinham habituado a amar, sem fazer demasiadas perguntas nem exigir nada mais do que esse amor tranquilo de todos os dias. É verdade que nunca quis ou nunca vivi para querer isso para mim. Queria mais, vê tu! Queria viver no limite todos os dias, queria que as coisas estivessem sempre a correr. Conhecer novas pessoas todo o tempo, sair, ir à discoteca, divertir-me todos os dias, sentir que podia seduzir à minha volta e brincar com isso. Mas agora (...) que fiquei sozinha, agora que te foste embora para a tua vida, (...) também a mim, de repente, me apetecia poder ir para casa e ter à minha espera alguém que me amasse. Não, não estou a dizer que queria que fosses tu. Não estou a dizer isso, estou a falar de alguém. Alguém sem nome.
     Eu sei que algures, mais adiante na minha vida, hei-de encontrar quem esteja em casa à minha espera quando eu chegar. Sim, eu sei, está escrito, é sempre assim. Mas era agora que eu queria não sentir este vazio, não te sentir tão distante (...). Queria só dar um sentido à nossa viagem. Já sei, já sei que nada dura para sempre - só as montanhas e os rios, meu sábio. Mas que fomos nós um para o outro: apenas companheiros ocasionais de viagem? Com tempo contado, com tudo previamente estabelecido e com prazo de validade previsto à partida? Foi só isso, diz-me, foi só isso o nosso encontro?"

Miguel Sousa Tavares, No teu deserto, Alfragide: Oficina do Livro, 2009, pp. 110-111

quinta-feira, 6 de março de 2014

Schweigen



"Um dia em que tive um grande desgosto, deitei-me para dormir sem saber como seria a minha vida para diante. Quando acordei, olhei-me ao espelho e vi, espantado, que duas grandes rugas me tinham nascido nessa noite, junto aos olhos. Não estavam lá antes de eu me ter deitado na véspera, mas agora estavam, nítidas e verdadeiras, a menos que eu as injectasse de botox e alguém inventasse uma cirurgia contra os desgostos. E habituei-me às rugas, conformei-me com o tempo que passa. Às vezes, lá onde moro, fico à noite a olhar as estrelas como as do deserto e oiço o tempo passar, mas não me angustia mais: eu sei que é justo e tudo o resto é falso. E às vezes, nesse terraço onde vejo e oiço as estrelas, onde escuto e aceito a ampulheta da minha vida, acendo o lume à maneira do Ali, com os galhos e ramos secos que fui colhendo durante o dia, ao passear pela paisagem. E, às vezes também, quando percebo que tudo está em paz e faz sentido, falo com a tua estrela, sei que tu me guardas e vigias, que perdoas todos estes anos de silêncio, tão cruéis e irreparáveis ausências, tanto medo (...) de seguir a tua estrela, a tua luz, em vez de tantas ofuscantes ilusões."

Miguel Sousa Tavares, No teu deserto, Alfragide: Oficina do Livro, 2009, pp. 117-118

quarta-feira, 5 de março de 2014

Briefe




"Tinha acabado de te escrever uma carta - mais uma, talvez a terceira - que nunca te cheguei a mandar e que destruí depois. E, escrevendo, poupei as coisas que gostaria de te ter dito e que gostaria que tivesses ouvido. Cheguei quase a convencer-me de que bastava escrever-te para tu me ouvires, mesmo que nunca tenha chegado a pôr as cartas no correio. Porque era tão sentido e tão magoado, tão distante, o que te dizia nessas cartas, que quase acreditei que tu não podias deixar de me ouvir. Não é verdade, pois não? Devia ter falado contigo, mas. se calhar, já era tarde, então. Já tantas coisas tinham passado pela minha vida, entretanto! A meada era já demasiado grande e longa para poder retomar o fio, onde quer que fosse. Queria que me ouvisses e que falasses comigo."

Miguel Sousa Tavares, No teu deserto, Alfragide: Oficina do Livro, 2009, p. 100-101