domingo, 25 de maio de 2014

Heute



"Mas não desistas ainda, tens tanto ainda que amar. Olha a vida e sorri. E não te perguntes para quê. Porque o mais extraordinário dela é justamente não ter para quê. (...) A vida não se te dá como uma esmola de senhora caritativa. A vida dá-se-te espontaneamente, sem razão nenhuma para esse dar. Não queiras inventar uma razão para a razão nenhuma disso. Haverá um ordem no infinito, não a penses agora. (...) A tua vida é o acaso sobre que não há que teres perguntas como a ave se não pergunta ao cantar ou a flor a florir num lugar onde ninguém passa. Não perguntes. (...) Sê grato e contente. E cala."

                                       Vergílio Ferreira, Pensar, Lisboa: Bertrand Editora, 1998 , pp. 204-5

terça-feira, 20 de maio de 2014

Enttäuschung 3



"O criador de imagens arrepende-se
no líquido lugar da realidade"

Gastão Cruz, "Depois da Fala", in Poemas Reunidos, Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1999, p. 265

terça-feira, 13 de maio de 2014

Unsterblichkeit


    "Amar não acaba. É como se o mundo estivesse à minha espera. E eu vou ao encontro do que me espera.
   Espero em Deus não viver no passado. Ter sempre o tempo presente e, mesmo ilusório, ter algo no futuro.
    O tempo corre, o tempo é curto: preciso me apressar, mas ao mesmo tempo viver como se esta minha vida fosse eterna. E depois morrer vai ser o final de alguma coisa fulgurante: morrer será um dos atos mais importantes da minha vida. Eu tenho medo de morrer: não sei que nebulosas e vias lácteas me esperam. Quero morrer dando ênfase à vida e à morte.
    Só peço uma coisa: na hora de morrer eu queria ter uma pessoa amada por mim ao meu lado para me segurar a mão. Então eu não terei medo, e estarei acompanhada quando atravessar a grande passagem."

Clarice Lispector, "As três experiências", in A Descoberta do Mundo - Crónicas, Lisboa: Relógio d' Água, 2013, p. 137.

sábado, 10 de maio de 2014

Ich vermisse deine Freundschaft und es ist alles!


    "Foram as últimas palavras dele que eu recordo. Depois, quis aproximar-me, quis abraçá-lo, estreitá-lo nos meus braços, mas só senti vento. 
    Não acredito que os sonhos anunciem o que quer que seja, como pretendem alguns. Penso simplesmente que surgem no momento conveniente, e que nos dizem, do fundo da noite, o que talvez não ousemos confessar a nós próprios à luz do dia."

                                                                                                                Philippe Claudel, O Relatório de Brodeck, Edições Asa: Porto, 2009: 176

terça-feira, 6 de maio de 2014

Beschreibung



"- É assim: tal como não consigo permanecer durante muito tempo no mesmo lugar, não consigo reter recordações. Mas o senhor, meu amigo, que tem capacidade para ter recordações, olhe para o seu passado no espaço de tempo de sessenta e cinco anos, ou mais dez ou quinze anos, e diga-me se descobre uma hora em que se sentiu feliz."

Karen Blixen, "Ecos" in As Cariátides, Ed. Relógio D' Água: Lisboa, 1989, pp. 62-3

sexta-feira, 2 de maio de 2014

Licht


"Um dia iremos nascer
com um livro de instruções
que nos dirá o que fazer
em todas as situações

Com botões assinalados
desde a cabeça aos pés
ligados ou desligados
conforma as nossas marés

Se a vida correr mal
será fácil a solução
é só ir ao manual 
e descobrir o botão

Sentiremos alegria
no lugar da solidão
desligando a apatia
e activando a paixão"

Ana de Fátima Janeiro, "Manual de Instruções" in Novíssimos. Lisboa: Editora Ausência, 2004, p. 22.

quinta-feira, 1 de maio de 2014

Liebe



"o suporte da música pode ser a relação 
entre um homem e uma mulher, a pauta 
dos seus gestos tocando-se, ou dos seus 
olhares encontrando-se, ou das suas 

vogais adivinhando-se abertas e recíprocas, 
ou dos seus obscuros sinais de entendimento, 
crescendo como trepadeiras entre eles. 
o suporte da música pode ser uma apetência 

dos seus ouvidos e do olfacto, de tudo o que se 
ramifica entre os timbres, os perfumes, 
mas é também um ritmo interior, uma parcela 
do cosmos, e eles sabem-no, perpassando 

por uns frágeis momentos, concentrado 
num ponto minúsculo, intensamente luminoso, 
que a música, desvendando-se, desdobra,

entre conhecimento e cúmplice harmonia."


Vasco Graça Moura, "o suporte da música" in "Antologia dos Sessenta Anos"