domingo, 31 de agosto de 2014

Verloren



"hoje é a última vez que pernoita no meio do vento
talvez regresse a casa dentro do corpo cansado
por isso vai pela ponte
tacteia a saída a um canto da fotografia
e sonolento descobre a pele envelhecida do viajante que foi"

Al Berto, O Medo, Lisboa: Assírio e Alvim, 1997, p. 208

sábado, 30 de agosto de 2014

Errinnerungen 2




"Para atravessar contigo o deserto do mundo
Para enfrentarmos juntos o terror da morte
Para ver a verdade, para perder o medo
Ao lado dos teus passos caminhei

Por ti deixei meu reino meu segredo
Minha rápida noite meu silêncio
Minha pérola redonda e seu oriente
Meu espelho minha vida minha imagem
E abandonei os jardins do paraíso

Cá fora à luz sem véu do dia duro
Sem os espelhos vi que estava nua
E ao descampado se chamava tempo

Por isso com teus gestos me vestiste
E aprendi a viver em pleno vento"


Sophia de Mello Breyner Andresen, Obra Poética II, Caminho: Lisboa, 1995, p. 128

sexta-feira, 29 de agosto de 2014

Rätsel



"Morrerão os velhos e os novos,
Em fila partirão permanecendo pouco.
Este mundo não nos foi dado para sempre,
Partimos nós e aqueles que virão depois."

                                                Umar-i Khayyam, Ruba'iyat, Lisboa: Assírio & Alvim, 2009:66

quarta-feira, 27 de agosto de 2014

Wünsche




"Esta história podia não ter fim.
Bem sei que diz de lagos e de chuva
E o seu final se fecha com a chuva
Caindo sobre o lago.
Mas mesmo assim podia não ter fim.

E se continuasse, então que fosse
Um fim feliz, uma segunda história,
Espécie de coisa bela e irmanada
Sem amor decaindo e onde as duas
Se encontrassem por fim num terceiro país.

Por exemplo, o Japão. Agrada-me o Japão
Nesta minha função de contadora,
Pelo tom improvável e exótico.
Que seja no Japão o seu encontro.
Imaginemos pois uma viagem.

Vindas de lugares extremos,
Alguns anos depois
E o pequeno amor à sua volta ainda.
Vulneráveis ainda. E em silêncio.


(...)

Só encontrar um fim feliz por fim
A não dizer de lagos nem de chuva."

Ana Luísa Amaral, "Epílogo"  in Ara, Porto: Sextante Editora, pp. 57, 63

Geständnis 1



"Não te esqueças de mim. Vou sentir a tua falta. Tanto. (...) Com certeza que sempre te amarei, mesmo se não nos virmos nunca mais. (...) 

Se soubesses (que nunca soubeste) como te amei. (...) Apaixonada por ti, passava dias a pensar se vier, se não vier. E uma palavra tua: mais que um sol inteiro. (...) 
E não me atrevo, como nunca me atrevi, a dizer nada, a falar o espaço mais minúsculo. Adivinhaste alguma vez? (...) Adivinhaste alguma vez as coisas que não disse? (...) Alguma vez o meu olhar me traiu junto de ti? Alguma vez me viste, como eu agora me recordo, como janela de encontro ao teu olhar, às mãos, e ao cabelo? (...)
Coisas que te detesto, pequenos sobressaltos de ti de que não gosto. Mas sobre esses desagrados, há uma ternura que me fascina ainda. Fascinou-me há anos. (...)
Por que te permiti que entrasses, porquê um telefonema, porquê continuar em folhas (tantas) uma amizade que eu só queria amizade, mesmo querendo amor? Desejava tanto só amizade. Ser capaz de te amar só assim. Sem este tremer de vela que eu não sei apagar. Não sei. Não sou capaz. E nunca to direi, nunca a coragem de uma confissão. Sei só que a distância há-de conseguir colocá-lo novamente em bom porto, como um navio de guerra depois da batalha, agora inútil, o navio. (...) eu: não posso refazer o que não houve,  (...) antes uma amizade, antes a tua voz de vez em quando, uma palavra tua para um sol inteiro,

só a distância

(...) estiveste sempre até eu te afastar, de tanta dor. A distância, a alargar-se, ajudou-me a recuar-te no coração. (...) Mas a vela a tremer estava lá de cada vez que eu te revia."  

Ana Luísa Amaral, "Epílogo" e "Coisas de rasgar" in Ara, Porto: Sextante Editora, pp. 59-60; 65-67

terça-feira, 26 de agosto de 2014

Nichts


"Talvez houvesse uma flor
aberta na tua mão.
Podia ter sido amor,
e foi apenas traição.

É tão negro o labirinto
que vai dar à tua rua...
Ai de mim, que nem pressinto
a cor dos ombros da Lua!

Talvez houvesse a passagem
de uma estrela no teu rosto.
Era quase uma viagem:
foi apenas um desgosto.

É tão negro o labirinto
que vai dar à tua rua...
Só o fantasma do instinto
na cinza do céu flutua.

Tens agora a mão fechada;
no rosto, nenhum fulgor.
Não foi nada, não foi nada: 
podia ter sido amor."

David Mourão-Ferreira, "Obra Poética 1948-1988", Lisboa: Editorial Presença, 1996, p. 157 

segunda-feira, 25 de agosto de 2014

Frieden


"Recorda o que quiseres. Canta montanhas, canta o seu corpo, agora sem fingir. Que dilúvios se instalem e relâmpagos encham de temor as letras recriadas. Um novo paraíso. Oferece-lhe palavras (as mais belas), rodeia-lhe a cintura de frases mais brilhantes que constelações, e nos seus olhos deposita imagens: as melhores."

Ana Luísa Amaral, "Discrepâncias (a duas vozes)" in Ara, Porto: Sextante Editora, p. 30

Vorstellung



"Faz de conta que ela era uma princesa azul pelo crepúsculo que viria, faz de conta que a infância era hoje e prateada de brinquedos, faz de conta que uma veia não se abrira e faz de conta que sangue escarlate não estava em silêncio branco escorrendo e que ela não estivesse pálida de morte, estava pálida de morte mas isso fazia de conta que estava mesmo de verdade, precisava no meio do faz de conta falar a verdade de pedra opaca para que contratasse com o faz de conta verde e cintilante de olhos que veem, faz de conta que ela amava e era amada, faz de conta que não precisava de morrer de saudade, faz de conta que estava deitada na palma transparente da mão de Deus, faz de conta que vivia e que não estivesse morrendo pois viver afinal não passava de se aproximar cada vez mais da morte, faz de conta que ela não ficava de braços caídos quando o fios de ouro que fiava se embaraçavam e ela não sabia desfazer o fino fio frio, faz de conta que era sábia bastante para desfazer os nós de marinheiros que lhe atavam os pulsos, faz de conta que tinha um cesto de pérolas só para olhar a cor da lua, faz de conta que ela fechasse os olhos e os seres amados surgissem quando abrisse os olhos úmidos da gratidão mais límpida, faz de conta que que tudo o que tinha não era de faz de conta, faz de conta que se descontraíra o peito e a luz dourada a guiava pela floresta de açudes e tranquilidades, faz de conta que ela não era lunar, faz de conta que ela não estava chorando."


Clarice Lispector, "Faz de conta", in A Descoberta do Mundo - Crónicas, Lisboa: Relógio d' Água, 2013, p. 201

domingo, 24 de agosto de 2014

Licht



"E tento outra paisagem. O que eu queria era inclinar-me aqui junto a pronomes certos. Não hesitar gramáticas, nem vida. O que queria era fazer história total: com tudo - nomes, paisagens, coisas."

Ana Luísa Amaral, "Memórias" in Ara, Porto: Sextante Editora, pp. 72-3

Unvergessbar



"Exactamente como foi, o medo de me enganar
mais tarde na memória - é tudo o que me resta: estar
de noite às escuras a pensar em ti.

E se me lembro mal, se troco as vezes, naquela

quinta-feira o dia do amor em vez de ser
na quarta, o erro surge-me gigante,
um peso carregado como Atlas.

Por isso é que preciso de lembrar coisas

exactas, como aconteceu tudo; não só
transpor depois a ficção recolhida, sou eu
que te preciso e dos teus dias
que me foram meus.

Lembro-me exactamente como foi, o que usei

nesse dia e o que usei no outro, até que horas
tudo, se havia gente ou não
e em que dia. Porque as palavras depois se
reconstroem.

O que se disse então torna-se

fácil - é tudo o que me resta: recordar.

Assim dito parece coisa pouca, lugar comum e

fácil, mas as noites são grandes

        e lembrar-te

        exactamente
        de uma forma correcta

é-me tão importante

dentro das noites a pensar em ti
sabendo: não te vejo nunca mais."

Ana Luísa Amaral, "Memórias" in Ara, Porto: Sextante Editora, pp. 51-2

sábado, 23 de agosto de 2014

Liebe ist...



"Em todos seus testamentos
a declarou por mulher,
e por s’isto melhor crer,
fez dois ricos moimentos,
em qu’ambos vereis jazer
rei, rainha, coroados,
mui juntos, não apartados
no cruzeiro d’Alcobaça.
Quem puder fazer bem, faça,
pois por bem se dão tais grados."

Garcia de Resende, "Trovas que Garcia de Resende fez à morte de Inês de Castro", in Antologia do Cancioneiro Geral de Garcia de Resende, selec. e org. de M. Ema Tarracha Ferreira, Lisboa: Ulisseia, s. d., pp. 153-4 



quarta-feira, 20 de agosto de 2014

Alte Erinnerungen wecken



   "Um amigo (porque a amizade é a mais alta e desprendida forma do amor) é isso, uma referência da nossa identidade (ou lá o que é aquilo que somos), uma habitação que, mais do que habitamos, nos habita ela, e por isso é que, de cada vez que um amigo desaparece, temos que recomeçar do princípio a nossa própria construção. 
    À medida que os anos passam, tenho deste modo (e estou certo de que, de um modo ou de outro, há-de acontecer algo semelhante com todos nós: uma espécie de terramoto interior, com réplicas que depois nunca mais deixam de repetir-se, cada vez menos sensíveis, ao longo da vida toda) construído e perdido sucessivamente mundos. E fui-me habituando ao convívio com a morte, à presença de lugares vazios à minha volta, que a memória nunca preenche completamente, nem a melancolia. E, no entanto..."


Manuel António Pina, "Lembrança dos amigos mortos", in Crónica, saudade da literatura, Lisboa: Assírio & Alvim, 2013, pp. 591-2

Stille 2



"Porque tememos tanto o silêncio? (...) É a coisa mais simples. Só um pouco de espaço para a identidade e para o pensamento; e talvez para o sofrimento, mas sem necessidade de ir contar tudo à TVI."

Manuel António Pina, "Um pouco de silêncio", in Crónica, saudade da literatura, Lisboa: Assírio & Alvim, 2013, pp. 538-540

Es gibt solche Tage...



   "Há dias em que até o cronista mais cínico se reconcilia com o mundo. O mundo é o mesmo, as pessoas são as mesmas, a existência não deixou de ser a tragédia absurda de sempre. Porém, de súbito, no meio do Inverno, o Sol rompe gloriosamente entre as ramagens descarnadas das árvores, o céu é alto e limpo, a luz quase magoa, de tão branca, e então, insensatamente, tudo, mundo e existência, parece fazer sentido.
   Talvez, quem sabe?, o coração precise de um pretexto para repousar por um momento da desesperança e os olhos para se abrirem para o calor das coisas e para a alegria. Mas em dias assim dir-se-ia que tudo se conjuga numa imensa conspiração contra o cepticismo. Um amigo longínquo telefona, o correio traz uma notícia ansiosamente aguardada e, na rua, à nossa volta, as pessoas são amigáveis, ninguém parece ter pressa nem ninguém parece, como nos outros dias, zangado consigo mesmo e com a vida."

Manuel António Pina, "Um raio de sol de inverno", in Crónica, saudade da literatura, Lisboa: Assírio & Alvim, 2013, p. 264

segunda-feira, 18 de agosto de 2014

Stille 1



"Não distingo as sombras do silêncio
Silêncio odor de luz
Evasão das árvores
Árvores que truncámos
No bosque da fala
Em silêncio
Em insignificância"

José Emílio-Nelson, A Alegria do Mal - Obra Poética I, Vila Nova de Famalicão: Quasi Edições, 2004: 85 

domingo, 17 de agosto de 2014

Vielleicht...



"Talvez, quem sabe?, depois da morte continuemos a sonhar que vivemos. Talvez a vida seja um sonho, como dizem os budistas, ou talvez seja fogo e combustão como em algumas teologias cristãs. De qualquer forma, a crer no velho tango da minha infância (...), hay que vivirla. Com alegria, e reconhecimento, ou só com resignação, não excluindo sentimentos menos convencionais."

Manuel António Pina, "Onde se fala de felicidade", in Crónica, saudade da literatura, Lisboa: Assírio & Alvim, 2013, p. 346

sábado, 16 de agosto de 2014

Auftrag


"Agora vai dizer-me o que desejo saber, não é verdade?"

Lawrence Durrel, Baltasar, Lisboa: Ed. Ulisseia, 2003, p. 139

quinta-feira, 14 de agosto de 2014

Fragmente des Zufalls 7



"«Quando se colhe uma flor, a haste volta a endireitar-se. Mas isso não é verdade com as afecções do coração», disse Clea certa vez que falava com Baltasar."

Lawrence Durrel, Baltasar, Lisboa: Ed. Ulisseia, 2003, p. 23

quarta-feira, 13 de agosto de 2014

Fragmente des Zufalls 6




"Nós vivemos - escreve algures Pursewarden - vidas baseadas sobre uma selecção de ficções. A nossa perspectiva da realidade é condicionada pela nossa posição no espaço e no tempo, e não pela nossa personalidade como geralmente se crê. Assim, cada interpretação da realidade se baseia sobre uma posição única. Dois passos para leste ou para oeste e o quadro muda inteiramente."

Lawrence Durrel, Baltasar, Lisboa: Ed. Ulisseia, 2003, p. 16

Fragmente des Zufalls 5



"Sonhos que eu cria ter depositado em lugar seguro lançando-os ao papel, confiando-os ao segredo das casas-fortes da memória! Pensaríeis que me delicio com estas evocações. Mas não é assim. Foi uma simples intervenção do acaso que tornou a levantar o problema obrigando-me a fazer o caminho percorrido. Uma recordação que se vê num espelho."

Lawrence Durrel, Baltasar, Lisboa: Ed. Ulisseia, 2003, p. 16

terça-feira, 12 de agosto de 2014

Fragmente des Zufalls 4



"Penso que os acontecimentos nada mais são do que uma espécie de comentários dos nossos sentimentos - estes podem ser deduzidos daqueles. O tempo leva-nos (imaginando ousadamente que somos egos discretos modelando os nossos próprios futuros) - o tempo leva-nos para diante pelo impulso desses sentimentos de que nós, pelo menos, temos consciência. Demasiado abstracto para si? Então é porque me exprimi mal."

Lawrence Durrel, Justine, Lisboa: Ed. Ulisseia, 2004, p. 199

segunda-feira, 11 de agosto de 2014

Fragmente des Zufalls 3



"Sinto que devo aguardar que as sombrias sequências da nossa história tornem a vir à tona, aguardar uma nova cadência. Isso talvez demore muitos anos e tenhamos ambos os cabelos brancos quando a maré voltar, bruscamente. Talvez a esperança morra antes de nascer, ou talvez naufrague nas vagas da vida. Tenho tão pouca fé em mim."

Lawrence Durrel, Justine, Lisboa: Ed. Ulisseia, 2004, p. 190

domingo, 10 de agosto de 2014

Fragmente des Zufalls 2



"- Olha! Cinco imagens diferentes da mesma pessoa. Se eu fosse escritor, tentaria descrever uma personagem assim, através de uma espécie de visão prismática. Porque será que não podemos ver mais de um perfil de uma só vez?"

Lawrence Durrel, Justine, Lisboa: Ed. Ulisseia, 2004, p. 23

sábado, 9 de agosto de 2014

Fragmente des Zufalls 1




"Ela vem. Os dois falam. (...) Não, não se trata de nada disso, as palavras não exprimem a realidade. Tentemos novamente desenhar o retrato (...) ajudados por esses frágeis e doentios instrumentos. Mas por onde havemos de começar?"

Lawrence Durrel, Justine, Lisboa: Ed. Ulisseia, 2004, p. 57.