domingo, 29 de maio de 2016

Mein lieber Freund




"Os amigos não morrem: andam por aí, entram por nós dentro quando menos se espera e então tudo muda: desarrumam o passado, desarrumam o presente, instalam-se com um sorriso num canto nosso e é como se nunca tivessem partido. É como, não: nunca partiram. (...) De modo que eis-nos juntos outra vez, entre silêncios, aberturas indianas do rei e longas conversas em que ele falava muito mais do que eu, acerca de literatura, filosofia, política. (...)

E assim fomos até ao automóvel: de vento em popa. Conforme eu, ao acabar este texto, sabendo que vou tornar a perdê-lo. Mas há-de existir por aí um braço e, tornando-se necessário, dilato-me dois metros. (..)

- De vento em popa

porque sei que ele me há-de amparar."

António Lobo Antunes, "Ernesto Melo Antunes", in http://visao.sapo.pt/opiniao/ , 23/11/2012


quinta-feira, 26 de maio de 2016

Veränderung


"Para não matar seu tempo, imaginou:
vivê-lo enquanto ele ocorre, ao vivo;
no instante finíssimo em que ocorre,
em ponta de agulha e porém acessível;
viver seu tempo: para o que ir viver
num deserto literal ou de alpendres;
em ermos, que não distraiam de viver
a agulha de um só instante, plenamente.
Plenamente: vivendo-o de dentro dele;
habitá-lo, na agulha de cada instante,
em cada agulha instante: e habitar nele
tudo o que habitar cede ao habitante.

E de volta de ir habitar seu tempo:
ele corre vazio, o tal tempo ao vivo;
e como além de vazio, transparente,
o instante a habitar passa invisível.
Portanto: para não matá-lo, matá-lo;
matar o tempo, enchendo-o de coisas;
em vez do deserto, ir viver nas ruas
onde o enchem e o matam as pessoas;
pois como o tempo ocorre transparente
e só ganha corpo e cor com seu miolo
(o que não passou do que lhe passou),
para habitá-lo: só no passado, morto."

João Cabral de Melo Neto, "Habitar o Tempo", in Poesia Completa, Lisboa: IN-CM, p. 156


sábado, 21 de maio de 2016

Sturm





"E agora, peço-vos, senhor,
Pois que ainda me não saiu do pensamento, 
Dizei-me a razão por que desencadeastes
Aquela tempestade?"

William Shakespeare, "A Tempestade, seguido de O Mar e o Espelho de W. H. Auden", Cotovia: Lisboa, 2009, p. 32

sábado, 14 de maio de 2016

Frag nicht






"confia o resto aos deuses, pois mal eles acalmem
os ventos que no impetuoso mar pelejam
nem os ciprestes se agitarão
nem os velhos freixos."

                                                                                                                                                                                                               Horácio, Odes, Lisboa: Livros Cotovia. 2008, p.  65      

domingo, 8 de maio de 2016

Beratung




"Nunca as águas dos rios de bela corrente e fluxo perene
passes a pé, antes de dirigir preces virado para as belas correntes, 
com as mãos lavadas na água apetecível e transparente.
Quem atravessa o rio, sem lavar as faltas e as mãos,
contra ele se irritam os deuses e lhe mandam as penas mais tarde."

     Hesíodo, Trabalhos e Dias, Lisboa: INCM 2014, p. 121

Elfte Stufe





"Notwendig dagegen, zu unterscheiden:
Auch «des Augenblicks erstaunenswerte Wunder,
die sind es nicht, die das bglückende,
das ruhig mächtige Dauernde erzeugen»."


                                                                                                                         Peter Handke, Poema à Duração, Lisboa: Assírio & Alvim, 2002, s. 28

sexta-feira, 6 de maio de 2016

Vorabend 11



"Se a palavra desistiu de ser um apelo
e sabe que não é mais que um fogo-fátuo
é porque a sua fragilidade ainda cintila
como um princípio que em si mesmo se consuma

E se volúveis são as sílabas é a sua sede que fulgura
e ela procura sua boca inocente
para saborear a doçura salgada
de uma outra boca que nasce do seu movimento ingénuo

Talvez assim ela reencontre o corpo
da sua ténue nudez tão gratuita e tão leve
e sendo apenas um sopro que atravessa as imagens

as desnude até serem vagas luas
sobre a maré branca de um silêncio iluminado
pelo seu abandono ao corpo que deseja"

António Ramos Rosa, As Palavras, Porto: Campo das Letras, 2001, p. 46

quarta-feira, 4 de maio de 2016

Verurteile mich nicht!



"You know my name, not my story. You' ve heard what I' ve  done, but not what I' ve been through. (...) The kind of individual that you see on the outside, is never the same person on the inside."

Jonathan Anthony Burkett, Neglected but Undefeated

domingo, 1 de maio de 2016

Betrachtung 2





"Na liberdade e na luz comparecemos
após cada caminhada sobre as falésias do tempo
e essa fonte que se derrama recorda-nos de novo 
a forma que damos ou retiramos aos percursos.
Na luz conhecemos e começamos
o fluido contorno do deslumbramento:
nela lavamos os olhos e as sombras
e nas mãos guardamos a sua paz nascente.
A palavra que aguarda tranquila
a sua actualidade viva ascende 
e regressa para que a luz seja nossa,
connosco a duração atravesse como uma promessa
que se cumpre e liberta em harmonia atenta."

             António Ramos Rosa e Maria Teresa Dias Furtado, O Alvor do Mundo - Diálogo Poético, Famalicão: Quasi, 2002, p. 41

Betrachtung 1







"Vejo a luz como não via e não sei como
presença pura em actualidade viva
e tão pausadamente lenta e lisa
na sua duração tranquila e repousada
que nada mais requer que ser contemplada
como derramada fonte suave e sumptuosa
E por isso a palavra lateja no silêncio da pupila
para que a sua leitura consagre a nascente viva
em seu divino repouso de matéria transparente
que transcende todo o tumulto e todo o caos
e em harmonia e limpidez lava a agonia
de não sermos senão a deslumbrada sombra que contempla"

              António Ramos Rosa e Maria Teresa Dias Furtado, O Alvor do Mundo - Diálogo Poético, Famalicão: Quasi, 2002, p. 40