"Os desgostos de amor são horríveis. E, por serem horríveis, as
pessoas dizem que fazem parte; que são o preço; que são um caminho; que dão
força e fazem crescer. Tal é o medo de aceitar a totalidade da tragédia que
são, que se chega ao ponto de ver os desgostos de amor como um rito de passagem
não só para a humanidade como para o próprio amor – o que é muito mais grave. É
sempre outrem que fala assim levemente, alguém que, se calhar, nunca teve um
desgosto de amor digno do nome ou, se o teve, já o esqueceu e, ao esquecê-lo,
provou que nunca amou, por muito desgostoso que tenha ficado. Porque também
existe o desgosto de ser abandonado por alguém de quem nos habituámos a fugir,
e de já não ser amado por quem nunca amámos. Mas isso é um simples desgosto que
nada tem a ver com o amor.
Já um desgosto de amor é um desgosto completo: uma desilusão e uma angústia; uma frustração de quase não existir, que começa por nós próprios, num incêndio de chuva que vai por aí afora até estragar o mundo inteiro, incluindo o que mais se queria proteger: a pessoa amada. Os abutres da consolação pretendem reclassificar os desgostos e ofender o amor e, distraídos pelo prazer necrófilo de cheirar, mesmo numa pessoa amada, a morte do amor alheio – tão secreta e infinitamente invejado! -, chegam a dizer as três palavras mais estúpidas, cruéis, inúteis e indignas daquelas circunstâncias: “Foi melhor assim.” Acrescentando, às vezes, mais duas: “Deixa lá.” Como se pudéssemos responder: “Boa ideia – vou deixar!” Os desgostos de amor estragam a alma. É preciso ter muito medo deles. Respeito. Cuidadinho. Tratar o amor nas palminhas. Mesmo antes de chegar a pessoa que se vai amar.
É que os corações partidos ficam partidos. Deixam de poder amar. E, em vez de amar, tornam-se músculos leves e cínicos, trocistas e elegantes. Pode até ser muito giro ser assim. Mas está para o amor como o gosto duma pedra de sal está para o mar. E às vezes ainda é mais triste: é o próprio gosto pelo amor, como quem gosta de um prazer qualquer, que mata o amor – a possibilidade de amar – logo à nascença. Será este o único desgosto, por muito caladinho que seja, tão grande como um desgosto de amor."
Miguel Esteves Cardoso, in crónicas no jornal Expresso
Já um desgosto de amor é um desgosto completo: uma desilusão e uma angústia; uma frustração de quase não existir, que começa por nós próprios, num incêndio de chuva que vai por aí afora até estragar o mundo inteiro, incluindo o que mais se queria proteger: a pessoa amada. Os abutres da consolação pretendem reclassificar os desgostos e ofender o amor e, distraídos pelo prazer necrófilo de cheirar, mesmo numa pessoa amada, a morte do amor alheio – tão secreta e infinitamente invejado! -, chegam a dizer as três palavras mais estúpidas, cruéis, inúteis e indignas daquelas circunstâncias: “Foi melhor assim.” Acrescentando, às vezes, mais duas: “Deixa lá.” Como se pudéssemos responder: “Boa ideia – vou deixar!” Os desgostos de amor estragam a alma. É preciso ter muito medo deles. Respeito. Cuidadinho. Tratar o amor nas palminhas. Mesmo antes de chegar a pessoa que se vai amar.
É que os corações partidos ficam partidos. Deixam de poder amar. E, em vez de amar, tornam-se músculos leves e cínicos, trocistas e elegantes. Pode até ser muito giro ser assim. Mas está para o amor como o gosto duma pedra de sal está para o mar. E às vezes ainda é mais triste: é o próprio gosto pelo amor, como quem gosta de um prazer qualquer, que mata o amor – a possibilidade de amar – logo à nascença. Será este o único desgosto, por muito caladinho que seja, tão grande como um desgosto de amor."
Miguel Esteves Cardoso, in crónicas no jornal Expresso
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