"Talvez se eu tivesse dito que
te amava, ao despedir-me de ti, a vida
tivesse sido outra, como se o curso de um rio
se pudesse alterar quando toda a água
passou pelas margens que agora ficaram
secas. O amor, podia dizer-te, seria como
o aluvião que arrasta tudo à sua
passagem, devastando para sempre
a paisagem. Mas limito-me
a ver que nada mudou, e verifico
que são as mesmas as plantas
que ali estavam quando
atravessei contigo a ponte de madeira,
embora sejam outras as folhas e as flores,
como outro será o teu rosto, tantos
anos passados sem te ver. E
a imagem que de súbito me surgiu,
na velha fotografia a preto e branco
em que és apenas uma sombra, fez com
que eu tivesse dito, na solidão
desta sala, que te amava - como se
pudesse sair de dentro do álbum, e
a vida que nunca vivemos pudesse
recomeçar, neste instante em que
deitei para o lixo a fotografia
de onde não quiseste sair."
Nuno Júdice, "Remorso Branco", in O fruto da gramática, Lisboa: D. Quixote, 2014, p. 32
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