terça-feira, 25 de novembro de 2014
Verlassenheit
"Aqueles passos que ficaram impressos na terra do jardim
no inverno, quando vinhas ao meu encontro e eu
te ia buscar, há muito se apagaram. Aos invernos
sucederam primaveras, e outros invernos voltaram,
e sempre que atravessava o jardim e queria ver
um sinal da tua existência, só a relva recentemente
plantada a tapar os pedaços de onde o temporal
a tinha arrancado, e que nós pisávamos na pressa
de nos ver, mostrava que algo ali teria ficado
do instante em que os meus e os teus passos
se juntavam, e por instantes nos demorávamos,
antes de voltar para o caminho de pedra que nos
levaria para o café. E por trás dos grandes vidros
húmidos da chuva e sujos do tabaco, o mundo
parecia esfumar-se, como se existíssemos nós
apenas, naquele sítio longe de tudo o que nos
distraía de nós. Heje, porém, quando me tento
lembrar do teu rosto, das tuas mãos, do modo
como falavas, ou do teu riso tantas vezes
melancólico, sombras e sombras se atravessam
entre mim e ti, sem que eu deixe de te olhar.
Nuno Júdice, "Elegia de Inverno", in O fruto da gramática, Lisboa: D. Quixote, 2014, p. 20
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
Sem comentários:
Enviar um comentário