"Este amor sigiloso, marginal,
levanta-se desde o inacessível da noite
para se colar aos dedos.
Rodeio as figuras das árvores
debaixo do peso impreciso
da chuva. Tudo se acalma.
Creio subitamente que vou respirar
toda esta pureza.
Suspeito que estas árvores
se ligam aos invisíveis poderes
da memória: acenam com o vento,
frenéticas, como tocadas por perpétua
revelação. São elas mesmas,
profusamente.
E o amor circula entre as dúvidas,
fecundando o segredo do sono,
suscitando mortes.
São estes os lugares da tragédia:
a feroz intromissão na paz
alheia, o terror da própria
respiração. O que se levanta
esta noite é também magoado
pelas hélices do tempo.
Porque as feridas são repentinas
contra a beleza do gesto,
ardem.
É preciso crescer para lá dos gritos,
para lá da correnteza onde se misturam
as amargas insuperadas orfandades,
para lá do jogo cego - o dom
é toda uma história
de sacrifício e transcendência.
É preciso devolver a arma do crime
à sua vítima.
O poço nocturno avança sob
a insuspeita perfeição da terra.
Os frutos cessam, terminam para dentro.
É preciso devolver as pedras
ao movimento, deitar o mundo
como um sangramento
para o espaço que lhe escapa,
invadir a vaga existência
das coisas para dentro das coisas
erguer uma fina metáfora.
As árvores gemem com o prodígio sensível
dos relâmpagos e o amor sigilosamente
se comunica à impaciente duração
dos corpos, e eu penso de novo
respirar toda esta pureza,
esta pureza queimando os nós
que suscitam a secreta água
dos dedos.
Este amor deitado, nu,
silenciosamente
aqui."
Vasco Gato, Imo, V.N. Famalicão:
Quasi Edições, 2003, pp. 55-57
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