sexta-feira, 7 de março de 2014

Heute



     "Foste-te embora (...) e eu fiquei sozinha, a pensar em ti e na tua visita. (...) Lá de fora vinha o ruído do trânsito (...), um ruído de gente e de automóveis apressados, gente que queria voltar para casa, onde estavam os que amavam ou os que se tinham habituado a amar, sem fazer demasiadas perguntas nem exigir nada mais do que esse amor tranquilo de todos os dias. É verdade que nunca quis ou nunca vivi para querer isso para mim. Queria mais, vê tu! Queria viver no limite todos os dias, queria que as coisas estivessem sempre a correr. Conhecer novas pessoas todo o tempo, sair, ir à discoteca, divertir-me todos os dias, sentir que podia seduzir à minha volta e brincar com isso. Mas agora (...) que fiquei sozinha, agora que te foste embora para a tua vida, (...) também a mim, de repente, me apetecia poder ir para casa e ter à minha espera alguém que me amasse. Não, não estou a dizer que queria que fosses tu. Não estou a dizer isso, estou a falar de alguém. Alguém sem nome.
     Eu sei que algures, mais adiante na minha vida, hei-de encontrar quem esteja em casa à minha espera quando eu chegar. Sim, eu sei, está escrito, é sempre assim. Mas era agora que eu queria não sentir este vazio, não te sentir tão distante (...). Queria só dar um sentido à nossa viagem. Já sei, já sei que nada dura para sempre - só as montanhas e os rios, meu sábio. Mas que fomos nós um para o outro: apenas companheiros ocasionais de viagem? Com tempo contado, com tudo previamente estabelecido e com prazo de validade previsto à partida? Foi só isso, diz-me, foi só isso o nosso encontro?"

Miguel Sousa Tavares, No teu deserto, Alfragide: Oficina do Livro, 2009, pp. 110-111

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