"Um dia em que tive um grande desgosto, deitei-me para dormir sem saber como seria a minha vida para diante. Quando acordei, olhei-me ao espelho e vi, espantado, que duas grandes rugas me tinham nascido nessa noite, junto aos olhos. Não estavam lá antes de eu me ter deitado na véspera, mas agora estavam, nítidas e verdadeiras, a menos que eu as injectasse de botox e alguém inventasse uma cirurgia contra os desgostos. E habituei-me às rugas, conformei-me com o tempo que passa. Às vezes, lá onde moro, fico à noite a olhar as estrelas como as do deserto e oiço o tempo passar, mas não me angustia mais: eu sei que é justo e tudo o resto é falso. E às vezes, nesse terraço onde vejo e oiço as estrelas, onde escuto e aceito a ampulheta da minha vida, acendo o lume à maneira do Ali, com os galhos e ramos secos que fui colhendo durante o dia, ao passear pela paisagem. E, às vezes também, quando percebo que tudo está em paz e faz sentido, falo com a tua estrela, sei que tu me guardas e vigias, que perdoas todos estes anos de silêncio, tão cruéis e irreparáveis ausências, tanto medo (...) de seguir a tua estrela, a tua luz, em vez de tantas ofuscantes ilusões."
Miguel Sousa Tavares, No teu deserto, Alfragide: Oficina do Livro, 2009, pp. 117-118
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