"Faz de conta que ela era uma princesa azul pelo crepúsculo que viria, faz de conta que a infância era hoje e prateada de brinquedos, faz de conta que uma veia não se abrira e faz de conta que sangue escarlate não estava em silêncio branco escorrendo e que ela não estivesse pálida de morte, estava pálida de morte mas isso fazia de conta que estava mesmo de verdade, precisava no meio do faz de conta falar a verdade de pedra opaca para que contratasse com o faz de conta verde e cintilante de olhos que veem, faz de conta que ela amava e era amada, faz de conta que não precisava de morrer de saudade, faz de conta que estava deitada na palma transparente da mão de Deus, faz de conta que vivia e que não estivesse morrendo pois viver afinal não passava de se aproximar cada vez mais da morte, faz de conta que ela não ficava de braços caídos quando o fios de ouro que fiava se embaraçavam e ela não sabia desfazer o fino fio frio, faz de conta que era sábia bastante para desfazer os nós de marinheiros que lhe atavam os pulsos, faz de conta que tinha um cesto de pérolas só para olhar a cor da lua, faz de conta que ela fechasse os olhos e os seres amados surgissem quando abrisse os olhos úmidos da gratidão mais límpida, faz de conta que que tudo o que tinha não era de faz de conta, faz de conta que se descontraíra o peito e a luz dourada a guiava pela floresta de açudes e tranquilidades, faz de conta que ela não era lunar, faz de conta que ela não estava chorando."
Clarice Lispector, "Faz de conta", in A Descoberta do Mundo - Crónicas, Lisboa: Relógio d' Água, 2013, p. 201
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