"Recebi ontem a tua carta e foi com a alegria que calculas. No entanto, lastimei que não fosses mais amplo em pormenores sobre a tua ida ao Brasil, os teu projectos, etc. Eu, quando tenho projectos, sinto sempre necessidade de os comunicar aos meus amigos e estimaria que tu fosses assim. Tive também, ao ver o endereço que me dás, uma sensação de melancolia: somos todos nós que partimos, caminhantes ansiosos dum ideal áureo e enganador... são as nossas almas que se dispersam errantes, uma aqui, outra ali, os nossos corpos que se desenraízam e nadam à toa pela água, tempestuosa para uns, estagnada para outros, como para mim. É este boiar na água estagnada o mais doloroso. Mas enfim, não pensemos mais nestes lamentos. Eu cá vou vivendo, sempre a mesma, um pouco menos aborrecida, um pouco menos infeliz porque a cidade é maior, maior o movimento, logo mais entorpecedor o ambiente. Nada de importante ou de novo tenho para te contara. Apenas nesta carta faço votos pelas tuas prosperidades e te rogo, encarecidamente te rogo, que escrevas longamente logo que esta recebas dando parte de tua vida, dos teus projectos. Notícias, em suma, da tua alma e do teu corpo.
Um grande abraço de alma."
In Cartas de Mário de Sá-Carneiro (leitura, selecção e notas de Arnaldo Saraiva), 1ª Ed., Limiar, 1977 (com alterações)