domingo, 31 de março de 2013

Sinnlos


 
"Quem escolhe em nós a relação das estações do ano com certos lugares precisos e a hora precisa de cada dia delas? (...) Se fosse todavia a escolher a memória mais profunda de tudo isto, o que iria encontrar nos resíduos da sensibilidade era o erguer da lua no Verão e a brancura da neve no Inverno. Iniciação à vida e sagração do fim. Talvez. Não sei."
 
 
Vergílio Ferreira, Conta-Corrente - Nova série III, Lisboa: Bertrand Editora, 1994, p. 159

quarta-feira, 27 de março de 2013

Unvergessbar...




"Nunca esquecera os momentos vividos (...). Ela tinha consciência de que esses momentos eram mágicos porque estavam inacabados, eram uma obra aberta, um destino de possibilidades, sem o desgaste de uma vida em comum. As grandes paixões vivem disso, da falta de verdadeira intimidade."

Afonso Cruz, A Boneca de Kokoschka, Lisboa: Quetzal, 2010, p. 119

sábado, 23 de março de 2013

Niemand kommt...




"Fala

Ouvir-te-ei
Aina que os segredos
As amoras me chamem

Diz-me
Que existirão lágrimas para chorar
Na velhice
Na solidão

Ainda que acordes os olhos dos deuses

Fala

Ouvir-te-ei
A coragem

Alguém de nós que já não está"


Daniel Faria, "Ausência", in Poesia, Lisboa: Assírio & Alvim, 2012, p. 394

quinta-feira, 21 de março de 2013

Freundschaft 3






    "Os amigos cada vez mais se vêem menos. Parece que era só quando éramos novos, trabalhávamos e bebíamos juntos que nos víamos as vezes que queríamos, sempre diariamente. E, no maior luxo de todos, há muito perdido: porque não tínhamos mais nada para fazer.
     Nesta semana, tenho almoçado com amigos meus grandes, que, pela primeira vez nas nossas vidas, não vejo há muitos anos. Cada um começa a falar comigo como se não tivéssemos passado um único dia sem nos vermos.
Nada falha. Tudo dispara como se nos estivera – e está – na massa do sangue: a excitação de contar coisas e partilhar ninharias; as risotas por piadas de há muito repetidas; as promessas de esperanças que estão há que décadas por realizar.
    Há grandes amigos que tenho a sorte de ter que insistem na importância da Presença com letra grande. Até agora nunca concordei, achando que a saudade faz pouco do tempo e que o coração é mais sensível à lembrança do que à repetição. Enganei-me. O melhor que os amigos e as amigas têm a fazer é verem-se cada vez que podem. É verdade que, mesmo tendo passado dez anos, sente-se o prazer inencontrável de reencontrar quem se pensava nunca mais encontrar. O tempo não passa pela amizade. Mas a amizade passa pelo tempo. É preciso segurá-la enquanto ela há. Somos amigos para sempre mas entre o dia de ficarmos amigos e o dia de morrermos vai uma distância tão grande como a vida."

Miguel Esteves Cardoso, in 'Jornal Público', http://www.citador.pt



segunda-feira, 18 de março de 2013

Zuflucht

 
 
"contigo quis partilhar
o rio
que nascia em mim
ainda em botão
 
agora já não tenho
senão
o verso de sequeiro
no coração"
 
Carlos Frias de Carvalho, rio primordial in luz da água, Lisboa: Edição Babel, 20011: p. 142


domingo, 17 de março de 2013

Wer?




    "- Não vais tropeçar nas escadas?
    e não tropeço, descansa, sento-me um instante num dos bancos da rua e continuo a andar, uma manchinha, uma coisa de nada que não existe, não se lamenta num berço, não sacode uma roca, se fosse capaz de exprimir o que sou e todavia sempre falei tão pouco (...) " 
 
 
"E agora, pergunto, o que será de mim quando acabado este capítulo deixarem para sempre de me ouvir, quem se lembrará do que fui, demorará um instante a pensar e se preocupará comigo, ninguém se lembra, pensa, se preocupa, compram outros livros, esquecem-me e eu sozinha em páginas sem leitor algum"
 

António Lobo Antunes, Ontem não te vi na Babilónia, Lisboa: Do Quixote, 2006, pp. 241 e  421

quinta-feira, 14 de março de 2013

Im Gespräch mit dir 1


 
"que dia é hoje ajudem-me, que terça-feira, que sexta, quem é que espero ainda, o que prometeu visitar-me, o outro de que recuso falar, deviam chover lágrimas quando o coração pesa muito e há momentos, palavra de honra, não se compreende o motivo mas pesa, sente-se dentro o
 
   (ia escrever incómodo e não incómodo conforme não tristeza, não dor, como se traduz isto, não sei)
 
    deviam chover lágrimas quando o coração pesa muito e há momentos palavra de honra que pesa
 
   (para já fica assim)"
 
 
António Lobo Antunes, Ontem não te vi na Babilónia, Lisboa: Do Quixote, 2006, p. 358

quarta-feira, 13 de março de 2013

Du...



"Habito a casa
Que me desabita

Passa ao longe a casa aonde mora
O meu olhar
E a esperança

E doem-me as janelas abertas
Das casas sem moradores
E os peitoris doutros corpos"

Daniel Faria, "A Casa dos Ceifeiros", in Poesia, Lisboa: Assírio & Alvim, 2012, p. 405

terça-feira, 12 de março de 2013

Lieber O. C., es ist zu spät...



"Mortalmente ferido como o último dos bichos
reclinou a cabeça, ainda há pouco pensativa, para sempre
e agora há muitos passos apressados pela casa
pois deixou repousar enormes mãos nas mais pequenas coisas
e levedado cresce e ultrapassa o circulo dos gestos cautelosos
Nada o detém nenhuma mão amarra aquele ser distante
irónico petrificado calmo diferente inacessível
E os anos resignadamente vão entrecobrindo os membros
do morto mais quebrado em praias entrementes
e a morte é uma coisa extraordinária

(...)

O nosso tempo cobre-te de pó e estás todo deitado e fixado e resignado
Cumpriste quanto foste e o que devias ser já é
Tiveste infância e tens somente agora
a lisa perspectiva de uma lousa
E o que será de nós? Teu repetido rosto diz-nos incessantemente
que cada um de nós apenas é também simples questão de tempo
Havia vento havia luz e mesmo isso esquecemos
Estamos por tudo e abdicar é coisa de somenos
Só essa longa posição vale afinal a pena
Ao menos exististe e conversaste e voltaste-te pra mim
amigo que partiste direito enorme triste?"

Ruy Belo, Todos os Poemas, Lisboa: Assírio & Alvim, 2000, pp. 175-177

sábado, 9 de março de 2013

Lieber O. C., Ich hätte heute gern mit dir gesprochen, aber du bist nicht mehr bei uns!

 
 


"ANTO

Mais nada. Boas noites. Fecha a porta
(Que linda noite! Os cravos vão abrir...
Faz tanto frio!): Apaga a luz! (Que importa?
A roupa chega para me cobrir...)

A MÃE DE ANTO

            Aqui, espero-te, há que tempo enorme!
               Tens o lugar quentinho...

Toma lá para ti, guarda. E ouve: na hora
Final, quando a trombeta além se ouvir,
Tu não me venhas acordar, embora
Chamem... Ah, deixa-me dormir, dormir!

DEUS

Dorme, dorme."

António Nobre, , Aveiro: Estante Editora, 1989, pp. 198-9

sexta-feira, 8 de março de 2013

Bestürzung



"Andar?! Não me custa nada!..
Mas estes passos que dou
Vão alongando uma estrada
Que nem sequer começou.

Andar na noite?! Que importa?... 
Não tenho medo da noite
Nem medo de me cansar:
Mas na estrada em que vou,
Passo sempre à mesma porta...
E começo a acreditar
No mau feitiço da estrada:
Que se ela não começou
Também não foi acabada!

Só sei que, neste destino,
Vou atrás do que não sei...
E já me sinto cansada
Dos passos que nunca dei."

Natália Correia, O Sol nas Noites e o Luarnos Dias I, Projornal, 1993, p. 27
 

quarta-feira, 6 de março de 2013

Warum?



"Porque ficou oceânico
o escasso momento de nós?"

Luiza Neto Jorge, Poesia ,  Lisboa: Assírio & Alvim, 2012, p. 28

sábado, 2 de março de 2013

Für Grossvater!


 
 
"Bocas rubras de chama a palpitar,
Onde fostes buscar a cor, o tom,
Esse perfume doido a esvoaçar,
Esse perfume capitoso e bom?!

Sois volúpias em flor! Ó gargalhadas
Doidas de luz, ó almas feitas risos!
Donde vem essa cor, ó desvairadas,
Lindas flores d´esculturais sorrisos?!

...Bem sei vosso segredo...Um rouxinol
Que vos viu nascer, ó flores do mal
Disse-me agora: "Uma manhã, o sol,

O sol vermelho e quente como estriga
De fogo, o sol do céu de Portugal
Beijou a boca a uma rapariga..."

Florbela Espanca