quarta-feira, 29 de outubro de 2014

Meine Seele



"Minha alma tem o peso da luz. Tem o peso da música. Tem o peso da palavra nunca dita, prestes quem sabe a ser dita. Tem o peso de uma lembrança. Tem o peso de uma saudade. Tem o peso de um olhar. Pesa como pesa uma ausência. E a lágrima que não se chorou. Tem o imaterial peso da solidão no meio dos outros."

N. B. Gotlib. "Clarice: Uma vida que se conta". São Paulo: Ática, 1995


sexta-feira, 24 de outubro de 2014

Müdigkeit








"Há sem dúvida quem ame o infinito,
Há sem dúvida quem deseje o impossível,
Há sem dúvida quem não queira nada —
Três tipos de idealistas, e eu nenhum deles:
Porque eu amo infinitamente o finito,
Porque eu desejo impossivelmente o possível,
Porque quero tudo, ou um pouco mais, se puder ser,
Ou até se não puder ser...
E o resultado?
Para eles a vida vivida ou sonhada,
Para eles o sonho sonhado ou vivido,
Para eles a média entre tudo e nada, isto é, isto...
Para mim só um grande, um profundo,
E, ah com que felicidade infecundo, cansaço,
Um supremíssimo cansaço,
Íssimo, íssimo, íssimo,
Cansaço..."

Poesias de Álvaro de Campos. Fernando Pessoa. Lisboa: Ática, 1944 (imp. 1993), p.
 64.

domingo, 19 de outubro de 2014

Deine Abschiedsworte




"Nada me dês nem peças.
E não meças
O que podias dar e receber.
Fecha a própria riqueza do teu ser.

Um de nós era a mais
À lírica janela...
Olharam-se os zagais,
Mas não houve novela.

A vida assim o quis,
A vida sem amor.
Não regues a raiz
Do que não teve flor."

Miguel Torga, "Bilhete", in Diário (1943)

sábado, 18 de outubro de 2014

Und sein Name war...



"Também eu conheci Artur Paz Semedo. Não trabalhava nos serviços de faturação de armamento ligeiro e munições da Belona S. A., e não teve uma ex-mulher pacifista. Não vivia em Itália. Provavelmente nunca pegou numa pistola, imagine-se se alguma vez terá pensado em dar um tiro. Mas também eu conheci Artur Paz Semedo e o seu nome era..."

Roberto Saviano,Também eu conheci Artur Paz Semedo, in Alabardas, José Saramago, Porto: Porto Editora. 2014, p.109 

segunda-feira, 13 de outubro de 2014

Ich habs geschafft...



"O que é preciso é ser-se natural e calmo 
Na felicidade ou na infelicidade, 
Sentir como quem olha, 
Pensar como quem anda, 
E quando se vai morrer, lembrar-se de que o dia morre, 
E que o poente é belo e é bela a noite que fica... 
Assim é e assim seja ... "



Alberto Caeiro, "O Guardador de Rebanhos - Poema XXI", in Poesia dos Ouros Eus. Lisboa: Assírio & Alvim. 2010

terça-feira, 7 de outubro de 2014

Augenblick




"Tudo renegarei menos o afecto,
e trago um ceptro e uma coroa, 
o primeiro de ferro, a segunda de urze,
para ser o rei efémero 
desse amor único e breve 
que se dilui em partidas 
e se fragmenta em perguntas 
iguais às das amantes 
que a claridade atordoa e converte.
Deixa-me reinar em ti 
o tempo apenas de um relâmpago 
a incendiar a erva seca dos cumes. 
E se tiver que montar guarda, 
que seja em redor do teu sono, 
num êxtase de lábios sobre a relva, 
num delírio de beijos sobre o ventre, 
num assombro de dedos sob a roupa. 
Eu estava morto e não sabia, sabes, 
que há um tempo dentro deste tempo 
para renascermos com os corais 
e sermos eternos na sofreguidão de um instante."


José Jorge Letria, in "Variantes do Oiro" (http://www.citador.pt/)

sexta-feira, 3 de outubro de 2014

Verstummt und traurig




"Dei-me inteiro. Os outros
fazem o mundo (ou crêem
que fazem). Eu sento-me 
na cancela, sem nada
de meu e tenho um sorriso
triste e uma gota
de ternura branda no olhar.
Dei-me inteiro. Sobram-me
coração, vísceras e um corpo.
Com isso vou vivendo."

Rui Knopfli, Memória Consentida: 20 anos de poesia 1959-1979. INCM: 1982