quarta-feira, 27 de novembro de 2013

Finsternis



"Carregou consigo o corpo doente, um ferido incómodo, durante os dias. A leveza fora substituída por miséria e cansaço. Saciada - um animal que matara sua sede inundando seu corpo de água. Mas ansiosa e infeliz como se apesar de tudo restassem terras ainda não molhadas, áridas e sedentas. Sofreu sobretudo de incompreensão, sozinha, atónita. Até que encostando a testa, no vidro da janela - rua quieta, a tarde caindo, o mundo lá fora -, sentiu o rosto molhado. Chorou livremente, como se esta fosse a solução. As lágrimas corriam grossas, sem que ela contraísse um só músculo da face. Chorou tanto que não soube contar. Sentiu-se depois como se tivesse voltado às suas verdadeiras proporções, miúda, murcha, humilde. Serenamente vazia."

Clarice Lispector, Perto do Coração Selvagem, Lisboa: Relógio D' Água, 2000, p. 97

sábado, 23 de novembro de 2013

Trauer 4


"este dia
este perverso dia
que veio depois de ontem"

Paulo Leminski, "Toda Poesia", São Paulo: Editora Schwarcz, 2013, p. 24

domingo, 17 de novembro de 2013

Träne

 
 

"As palavras depõem
contra o coração,
que não quer dizer nada
nem ouvir nada."

Manuel António Pina, "Nenhuma Palavra e Nenhuma Lembrança", Lisboa: Assírio & Alvim, 1999, p. 15

sexta-feira, 15 de novembro de 2013

Nichts



"Ficou para trás, quente, a vida,
a marca colorida dos meus olhos, o tempo
em que ardiam no fundo de cada vento
mãos vivas, cercando-me...

Ficou a carícia que não encontro
senão entre dois sonos, a infinita
minha sabedoria em pedaços. E tu, palavra
que transfiguravas o sangue em lágrimas.

Nem sequer um rosto trago
comigo, já traspassado em outro rosto
como esperança no vinho e consumado
em acesos silêncios...

                                     Volto sozinha
entre dois sonos lá 'trás, vejo a oliveira
rósea nas talhas cheias de água e lua
do longo inverno. Torno a ti que gelas

na minha leve túnica de fogo."


Cristina Campo, O Passo do Adeus. Lisboa: Assírio & Alvim, 2002, p. 25

quinta-feira, 14 de novembro de 2013

Gespräch 3



    "Não me compreendo nem compreendo os outros. Tudo me parece inútil, e agarro-me com desespero a um fio de vida, como um náufrago a um pedaço de tábua.
    Não sei o que é a vida. Chamo vida ao espanto. Chamo vida a esta saudade, a esta dor; chamo vida e morte a este cataclismo. É a imensidade e um nada que me absorve; é uma queda imensa e infinita, onde disponho de um único momento."
 
Raúl Brandão, Húmus, Ribeirão: Edições Húmus, 2010, p.223

quarta-feira, 13 de novembro de 2013

Gespräch 2



"Eu gostaria da sua companhia. Mas não vejo em que meus pensamentos nem minhas palavras, nem os meus gestos sirvam de alguma coisa para você."

Gastão de Holanda, Os Escorpiões, Lisboa: Livros do Brasil, s. d., p.195

terça-feira, 12 de novembro de 2013

Geheimnis



"É preciso entrar na paisagem,
espreitar consecutivamente o mundo.

Não há ponte entre duas margens,
só quem habita a corrente
pode aspirar a todas as moradas."

Vasco Gato, Imo, V.N. Famalicão: Quasi Edições, 2003, p. 92


sábado, 9 de novembro de 2013

Zerschlagt



"relembramos pessoas e pensamos em como foi, afinal, tão fácil vivermos esquecidos delas e como se torna tão cruel que assim seja. vemos os seus retratos, recordamos a simpatia dos momentos em que coincidimos, e depois medimos a distância a que estamos desses momentos, dos sentimentos e, sobretudo, da memória. e percebemos que não nos recordaríamos daquela pessoa não fora o acaso de a reconhecermos naquela definição horizontal, já sem poder escapar. e o que será isso senão uma crueldade dos caminhos da vida. uma crueldade do deve e haver da vida. uma crueldade do comércio afectivo de que somos capazes. incapazes de conservar tudo e todos, incapazes de sermos por tudo e de sermos por todos."
 
 
valter hugo mãe, a máquina de fazer espanhóis , Editora Objectiva, 2013, p. 121

segunda-feira, 4 de novembro de 2013

Ab und zu...



"É tarde já, vão sendo horas - horas de quê? De nada. De existir. De olhar ainda a luz, a vida. De absorver em mim o universo e levá-lo comigo sem nada desperdiçar. De exercer o ouvido enquanto ouve, os olhos, o corpo inteiro para que nada fique dele sem se cumprir. De encher os bolsos de tudo o que se me dá ou sonhar mesmo o que me não deram e deixar perder nada por distracção. De dizer a palavra vida e tudo nela florir logo na sua existência para levar comigo essa vida inteira e tê-la comigo na morte."
 
Vergílio Ferreira, Escrever, Lisboa: Bertrand Editora, 2001 , pp. 26-7

domingo, 3 de novembro de 2013

Die Lebende





"- Agora vai - disse ela."

Karen Blixen, A Festa de Babette e outras histórias, Ed. Asa: Lisboa, 2002, p. 213