sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

Stimmlos


"Já o silêncio não é de oiro: é de cristal;
redoma de cristal este silêncio imposto."

David Mourão-Ferreira, "Obra Poética 1948-1988", Lisboa: Editorial Presença, 1996: 60

quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

Heimweh



"O que desconheço : a casa. O modo como a encontrei de noite
As formas das coisas que vi quando observei a transparência
O vidro no fogo sofrendo a forma que o vai quebrar
(Vi que nada do que existe é inteiro)

Digo-o porque mo revelaram: uma é a claridade
Do sol. Outra a claridade da lua e outra a claridade
Das estrelas. Há ainda diferença de estrela para estrela
Na claridade. (Vi
Que tudo era igual à ressurreição dos mortos)

O que procurei: a claridade da morte
Ou precisando  –  se se pode regressar pelo mesmo
Caminho que se toma para casa

O que medito (na cela nocturna):
As diferenças da luz da candeia no homem
Quando desce

O que mais recordo: os degraus"

Daniel Faria, Poesia, Lisboa: Assírio & Alvim, 2012, p. 313 

terça-feira, 28 de janeiro de 2014

Qual




"Tentei encurtar as horas com relógios pequenos e alargá-las com relógios maiores. De nada me valeu. Ó minha angústia. Por que é que as coisas são tão reais?"


Daniel Faria, O Livro do Joaquim, Quasi Edições: V. Nova de Famalicão, 2007, p. 70 

domingo, 26 de janeiro de 2014

Was ist das?



"Quando o amor entra no tempo proibido dos interesses humanos, perdidas estão as razões que os guiam. Estabelece-se a perturbação, os risos tornam-se mais perplexos que motivados por qualquer coisa ou alguém. Não é raro que uma mulher consciente do seu poder, se encontre com um amor que é para ela como a instrução da imortalidade. Começa por chorar e alegrar-se à toa, a seguir languidece, como diz o poeta, como uma semente no chão, esperando ser encontrada. Antes do desejo está a deslumbrada fogueira da madrugada que o sol não deixa imaginar que arde. Depois o objecto do amor é distinguido como a alvura sobre a neve. O seu costume, os seus modos e feitios são recolhidos num arquivo onde não se extinga a memória. Vanessa disse, enquanto fumava um charro, que lhe acontecia alguma coisa como uma doença:
     - Tenho calor e frio, não percebo. Quem me pôs assim?
     Porque é normal ignorarmos quem se ama, e esse alguém não se diferencia durante algum tempo das coisas voláteis e indiferentes."

Agustina Bessa-Luís. O Princípio da Incerteza: Jóia de Família. Lisboa: Guimarães Editores, 2005, pp. 75-6

sexta-feira, 24 de janeiro de 2014

Das ist was ich möchte...


"Depois de tudo, no vazio
da manhã inabitável,

ajuda-me a negar 
este remorso:

eu só queria uma canção
que não morresse

e a hipótese de um poema 
que não fosse

o lugar onde me encontro
uma vez mais,

sem desculpa, sem remédio,
diante de mim mesmo."

Rui Pires Cabral, Meu Amigo, in Resumo: A poesia de 2012, Documenta / Fnac: Lisboa, 2013

terça-feira, 21 de janeiro de 2014

Sie schläft nur...





"Quando eu um dia decisivamente voltar a face
daquelas coisas que só de perfil contemplei
quem procurará nelas as linhas do teu rosto?
Quem dará o teu nome a todas as ruas
que encontrar no coração e na cidade?
Quem te porá como fruto nas árvores ou como paisagem
no brilho de olhos lavados nas quatro estações?
Quando toda a alegria for clandestina
alguém te dobrará em cada esquina?"


Ruy Belo, Todos os Poemas, Lisboa: Assírio & Alvim, 2000, pp. 52-3

domingo, 12 de janeiro de 2014

So ist er...



"(...) sabia quanto o rasgado humor de Camilo estava na razão inversa da sua felicidade. Procurava-a nos momentos mais penosos da vida, e sempre demonstrava aquela ironia malévola que era uma espécie de escape diante da contrariedade que não podia dominar. Ele não era homem para vencer o destino, mas também não ficava parado; tinha a ideia, muito funda no seu inconsciente, de que a blasfémia impede que as situações más se repitam. Possivelmente, toda a gente é um pouco assim."
 
Agustina Bessa-Luís. Fanny Owen. Lisboa: Guimarães Editores, 2009, p. 157
 

sábado, 11 de janeiro de 2014

Sei nun mutig!



    "O dia de hoje não tem fim ... e já passou! Ele, que foi pedra sobre nós, volatizou-se: é o dia de ontem. Seu vulto cruel embrandeceu; os minutos que o formaram perderam-se uns nos outros; desapareceram todos no incêndio do Poente... E o dia de ontem é tão distante como o primeiro dia da nossa infância! É um dia que nunca existiu...
    Se o dia de hoje é a nossa pessoa e a dor coincidindo, o dia de ontem é a nossa pessoa já lembrança, liberta do sofrimento. Cada dia que foge nos resgata. Desaparecemos no poente...
    O Sol regressa e nós regressamos também. Repete-se o Drama. Deus e Satã continuam o duelo interrompido. Depois, o Sol nasce do horizonte, com duas manchas de sombra que são os nossos olhos já desfeitos em poeira... Entre ele e o mundo paira uma nuvem negra: é o nosso espectro, a nossa hora morta e para sempre extasiada na sua própria escuridão..."
 
Teixeira de Pascoaes, O Bailado, Colecção "Obras Completas de Teixeira de Pascoaes", organização de Jacinto do Prado Coelho, volume VIII, Livraria Bertrand: Amadora, 1973, pp. 164-5 

domingo, 5 de janeiro de 2014

Schatten



"Dous horizonte fecham nossa vida:

Um horizonte, — a saudade
Do que não há de voltar;
Outro horizonte, — a esperança
Dos tempos que hão de chegar;
No presente, — sempre escuro, —
Vive a alma ambiciosa
Na ilusão voluptuosa
Do passado e do futuro.


Os doces brincos da infância
Sob as asas maternais,
O vôo das andorinhas,
A onda viva e os rosais.
O gozo do amor, sonhado
Num olhar profundo e ardente,
Tal é na hora presente
O horizonte do passado.


Ou ambição de grandeza
Que no espírito calou,
Desejo de amor sincero
Que o coração não gozou;
Ou um viver calmo e puro
À alma convalescente,
Tal é na hora presente
O horizonte do futuro.


No breve correr dos dias
Sob o azul do céu, — tais são
Limites no mar da vida:
Saudade ou aspiração;
Ao nosso espírito ardente,
Na avidez do bem sonhado,
Nunca o presente é passado,
Nunca o futuro é presente.


Que cismas, homem? — Perdido
No mar das recordações,
Escuto um eco sentido
Das passadas ilusões.
Que buscas, homem? — Procuro,
Através da imensidade,
Ler a doce realidade
Das ilusões do futuro.


Dous horizontes fecham nossa vida."

Machado de Assis, Os dois horizontes, in http://www.jornaldepoesia.jor.br