terça-feira, 30 de setembro de 2014

Zu meinen Freunde






"Amo devagar os amigos que são tristes com cinco dedos de cada lado. 
Os amigos que enlouquecem e estão sentados, fechando os olhos, 
com os livros atrás a arder para toda a eternidade. 
Não os chamo, e eles voltam-se profundamente 
dentro do fogo. 
- Temos um talento doloroso e obscuro. 
Construímos um lugar de silêncio. 
De Paixão." 

Herberto Helder, Poesia Toda, Lisboa: Assírio & Alvim, 1996, p. 113.

segunda-feira, 29 de setembro de 2014

Müdigkeit und Träne




"Estou cansado, é claro,
Porque, a certa altura, a gente tem de estar cansado.
De que estou cansado, não sei:
De nada me serviria sabê-lo,
Pois o cansaço fica na mesma.
A ferida dói como dói
E não em função da causa que a produziu."

Obra Poética de Fernando Pessoa, Poemas de Álvaro de Campos, Lisboa: Publicações Europa-América, s. d., pp. 122-3



"Nunca sei se quero descansar porque estou realmente cansada, ou se quero descansar para desistir."
                                                                                                                        Clarice Lispector

quarta-feira, 17 de setembro de 2014

Gebet








Nossa Senhora do Silêncio

"Às vezes quando, abatido e humilde, a própria força de sonhar se me desfolha e se me seca, e o meu único sonho só pode ser o pensar nos meus sonhos, folhejo-os então, como a um livro que se folheia e se torna a folhear sem ter mais que palavras inevitáveis. É então que me interrogo sobre quem tu és, figura que atravessas todas as minhas visões demoradas de paisagens outras, e de interiores antigos e de cerimoniais faustosos de silêncio. Em todos os meus sonhos ou apareces, sonho, ou, realidade falsa, me acompanhas. Visito contigo regiões que são talvez sonhos teus, terras que são talvez corpos teus de ausência e desumanidade, o teu corpo essencial descontornado para planície calma e monte de perfil frio em jardim de palácio oculto. Talvez eu não tenha outro sonho senão tu, talvez seja nos teus olhos, encostando a minha face à tua, que eu lerei essas paisagens impossíveis, esses tédios falsos, esses sentimentos que habitam a sombra dos meus cansaços e as grutas dos meus desassossegos. Quem sabe se as paisagens dos meus sonhos não são o meu modo de não te sonhar? Eu não sei quem tu és, mas sei ao certo o que sou? Sei eu o que é sonhar para que saiba o que vale o chamar-te o meu sonho? Sei eu se não és uma parte, quem sabe se a parte essencial e real, de mim? E sei eu se não sou eu o sonho e tu a realidade, eu um sonho teu e não tu um Sonho que eu sonhe?
Que espécie de vida tens? Que modo de ver é o modo como te vejo? Teu perfil? Nunca é o mesmo, mas não muda nunca. E eu digo isto porque o sei, ainda que não saiba que o sei. Teu corpo? Nu é o mesmo que vestido, sentado está na mesma atitude do que quando deitado ou de pé. Que significa isto, que não significa nada?"

Fernando Pessoa, O Livro do Desassossego, Composto por Bernardo Soares, ajudante de guarda-livros na cidade de Lisboa, Linda-a.Velha: Biblioteca Visão, 2000, pp. 329-30

sábado, 13 de setembro de 2014

Zu meinem Geburtstag!




"Mas hoje paro de cantar. O poente
De folhas secas veste o horizonte.
E como outrora escuto, mansamente,
            A voz da mesma fonte."

Duarte Solano, Coroa de rosas, Penafiel: Associação Amigos da Biblioteca Municipal de Penafiel, 2013, p. 91

terça-feira, 9 de setembro de 2014

Zu deinem Geburtstag!



"O homem que assim se aproxima, vago entre as cordas de chuva, é o meu avô. Vem cansado, o velho. Arrasta consigo 70 ano de vida difícil, de privações, de ignorância. E no entanto é um homem sábio, calado, que só abre a boca para dizer o indispensável. Fala tão pouco que todos nos calamos para o ouvir quando no rosto se lhe acende algo como uma luz de aviso.(...) Mas a imagem que não me larga nesta hora de melancolia é a do velho que avança sob a chuva, obstinado, silencioso, como quem cumpre um destino que nada poderá modificar. A não ser a morte. Este velho, que quase toco com a mão, não sabe como irá morrer. Ainda não sabe que poucos dias antes do seu último dia terá o pressentimento de que o fim chegou, e irá, de árvore em árvore do seu quintal, abraçar os troncos, despedir-se deles, das sombras amigas, dos frutos que não voltará a comer. Porque terá chegado a grande sombra, enquanto a memória não o ressuscitar no caminho alagado ou sob o côncavo do céu e a eterna interrogação dos astros. Que palavra dirá então?"

José Saramago, As Pequenas Memórias, Lisboa: Editorial Caminho, 2006, pp. 129-130

segunda-feira, 8 de setembro de 2014

Bis Morgen, Lieber O.!



"Às vezes pergunto-me se certas recordações são realmente minhas, se não serão mais do que lembranças alheias de episódios de que eu tivesse sido actor inconsciente e dos quais só mais tarde vim a ter conhecimento por me terem sido narrados por pessoas que neles houvessem estado presentes, se é que não falariam, também elas, por terem ouvido contar a outras pessoas."

José Saramago, As Pequenas Memórias, Lisboa: Editorial Caminho, 2006, pp. 63-4

domingo, 7 de setembro de 2014

Lass mich dir helfen, bevor es zuspät ist!



  
  "Darei o que posso aos meus amigos: um capítulo no livro, que relembra uma época de provação de amigos. (...)
    Amigos verdadeiros são os que nos acodem inopinados com valedora mão nas tormentas desfeitas. Esses vêm de Deus, e cumprem a mensagem divina de dizer ao infeliz que o Criador formando o homem, não estava caprichando no requintar a sua omnipresença em abortos de ferocidade e velhacaria."

Camilo Castelo Branco, Memórias do Cárcere, Lisboa: Parceria A. M. Pereira, 2011: 173

quinta-feira, 4 de setembro de 2014

Eine Stunde oder sechzig Sekunde?



"Não sei como o perceberão as crianças de agora, mas, naquelas épocas remotas, para as infâncias que fomos, o tempo aparecia-nos como feito de uma espécie particular de horas, todas lentas, arrastadas, intermináveis. Tiveram de passar alguns anos para que começássemos a compreender, já sem remédio, que cada uma tinha apenas sessenta minutos, e, mais tarde ainda, teríamos a certeza de que todos estes, sem excepção, acabavam ao fim de sessenta segundos."

                                 José Saramago, As Pequenas Memórias, Lisboa: Editorial Caminho, 2006, p. 65

quarta-feira, 3 de setembro de 2014

Dein Geburtstag



"Feliz de quem passou, por entre a mágoa
E as paixões da existência tumultuosa,
Inconsciente, como passa a rosa.
E leve como sombra sobre a água."

Antero de Quental, "Zara", in Antologia Pessoal da Poesia Portuguesa, org. Eugénio de Andrade, Porto: Campo das Letras, 2000, p.222


segunda-feira, 1 de setembro de 2014

Licht




"Faz-se luz pelo processo 
de eliminação de sombras
Ora as sombras existem
as sombras têm exaustiva vida própria
não dum e doutro lado da luz mas no próprio seio dela
intensamente amantes loucamente amadas
e espalham pelo chão braços de luz cinzenta
que se introduzem pelo bico nos olhos do homem

Por outro lado a sombra dita a luz
não ilumina realmente os objectos
os objectos vivem às escuras
numa perpétua aurora surrealista
com a qual não podemos contactar
senão como amantes
de olhos fechados
e lâmpadas nos dedos e na boca"

Mário Cesariny, in "Pena Capital" (
http://www.citador.pt/)