terça-feira, 25 de novembro de 2014

Verlassenheit




"Aqueles passos que ficaram impressos na terra do jardim
no inverno, quando vinhas ao meu encontro e eu 
te ia buscar, há muito se apagaram. Aos invernos
sucederam primaveras, e outros invernos voltaram,
e sempre que atravessava o jardim e queria ver
um sinal da tua existência, só a relva recentemente
plantada a tapar os pedaços de onde o temporal
a tinha arrancado, e que nós pisávamos na pressa
de nos ver, mostrava que algo ali teria ficado
do instante em que os meus e os teus passos
se juntavam, e por instantes nos demorávamos,
antes de voltar para o caminho de pedra que nos
levaria para o café. E por trás dos grandes vidros
húmidos da chuva e sujos do tabaco, o mundo
parecia esfumar-se, como se existíssemos nós
apenas, naquele sítio longe de tudo o que nos
distraía de nós. Heje, porém, quando me tento
lembrar do teu rosto, das tuas mãos, do modo
como falavas, ou do teu riso tantas vezes
melancólico, sombras e sombras se atravessam
entre mim e ti, sem que eu deixe de te olhar.


Nuno Júdice, "Elegia de Inverno", in O fruto da gramática, Lisboa: D. Quixote, 2014, p. 20 

quarta-feira, 19 de novembro de 2014

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   "Não precisa ser homem, basta ser humano, basta ter sentimento, basta ter coração. Precisa  saber falar e calar, sobretudo saber ouvir. Tem que gostar de poesia, de madrugada, de  pássaro, de sol, da lua, do canto dos ventos e das canções da brisa. Deve ter amor, um grande amor por alguém, ou então sentir falta de não ter esse amor. Deve amar o próximo e respeitar a dor que os passantes levam consigo. Deve guardar segredo sem se sacrificar.
   Não é preciso que seja de primeira mão, nem é imprescindível que seja de segunda mão. Pode já ter sido enganado (...). Não é preciso que seja puro, nem que seja de todo impuro, mas não deve ser vulgar. Deve ter um ideal e medo de perdê-lo e, no caso de assim não ser, deve sentir o grande vácuo que isso deixa. (...) Deve sentir pena das  pessoas tristes e compreender o imenso vazio dos solitários. 
  (...) Deve gostar de ruas desertas, de poças de água e de caminhos molhados, de  beira de estrada, de mato depois da chuva, de se deitar no capim."

Vinícius de Moraes (?), in http://www.blassoc.com.br/bettyvidigaltextovm.htm

sábado, 15 de novembro de 2014

Dort, wo du mich erwartest...




"Estás só. Ninguém o sabe. Cala e finge.
Mas finge sem fingimento.
Nada 'speres que em ti já não exista,
Cada um consigo é triste.
Tens sol se há sol, ramos se ramos buscas,
Sorte se a sorte é dada."

Odes de Ricardo Reis . Fernando Pessoa. Mem Martins: Livros de Bolso Europa-América, s. d., p. 141.

terça-feira, 4 de novembro de 2014

Jetzt ist es zu spät...



"Talvez se eu tivesse dito que
te amava, ao despedir-me de ti, a vida 
tivesse sido outra, como se o curso de um rio 
se pudesse alterar quando toda a água
passou pelas margens que agora ficaram
secas. O amor, podia dizer-te, seria como 
o aluvião que arrasta tudo à sua 
passagem, devastando para sempre
a paisagem. Mas limito-me 
a ver que nada mudou, e verifico
que são as mesmas as plantas
que ali estavam quando
atravessei contigo a ponte de madeira,
embora sejam outras as folhas e as flores,
como outro será o teu rosto, tantos 
anos passados sem te ver. E
a imagem que de súbito me surgiu,
na velha fotografia a preto e branco
em que és apenas uma sombra, fez com
que eu tivesse dito, na solidão
desta sala, que te amava - como se 
pudesse sair de dentro do álbum, e
a vida que nunca vivemos pudesse 
recomeçar, neste instante em que
deitei para o lixo a fotografia
de onde não quiseste sair."

Nuno Júdice, "Remorso Branco", in O fruto da gramática, Lisboa: D. Quixote, 2014, p. 32