quinta-feira, 29 de novembro de 2012
Eine Frau...
"A mulher muitas vezes avança
A mulher muitas vezes caminha pela borda
Do vestido. Pudesse tocar
A fímbria ou a franja de toda a casa
Ela a sararia. Ela sairia
Com o cabelo solto
Muitas vezes a mulher prende o cabelo com as mãos
Cose muitas vezes com a lâmpada por dentro - a agulha
A cerzir o brilho. A mulher remenda
A lâmpada apagada. Por dentro
O coração ponteia alguma luz
A vida roda, o vestido rompe-se
A mulher é um barco quando se afunda
A hélice gira - gera como planta
Em redor da luz. A mulher
Anda em redor como corola
Sem pólen
A azenha anda à volta na memória e a água corre-lhe
Dos olhos. Põe o coração para a frente como os fuzilados
Enxuga os olhos como se espalhasse. A mulher
Varre infinitamente mais do que o que vemos ou somos capazes de imaginar
E há imagens na terra
Que nunca lhe lembram o céu"
Daniel Faria, "Do que sangro", in Poesia, Lisboa: Assírio & Alvim, 2012, p. 320-1
quarta-feira, 28 de novembro de 2012
So einfach...
"Instruções: Quando as preocupações apertam, abane a tábua na minha direcção."
Herta Müller, A Terra das Ameixas Verdes, Lisboa, Difel, 2007: 134
domingo, 25 de novembro de 2012
Abfahrt
"Quero um dia para chorar.
Mas a vida vai tão depressa!
- e é preciso deixar contida
a tristeza, para que a vida,
que acaba quando mal começa,
tenha tempo para se acabar.
Não quero amor, não quero amar...
Não quero nenhuma promessa
nem mesmo para ser cumprida.
Não quero a esperança partida,
nem nada de quanto regressa.
Quero um dia para chorar."
Cecília Meireles, O Instante Existe, Cascais: Arte Plural Eds., 2003, p. 32.
quinta-feira, 22 de novembro de 2012
Die Worte
"Lutar com as palavras, progredir
pelo interior desta guerra até chegar
à palavra única da perda, esmagá-la
contra mim, obriga-me a dizer
o seu corpo dizimado. O caos. Os cacos."
Rui Nunes, Grito, Lisboa: Relógio D'Água, 1997, p. 51
terça-feira, 20 de novembro de 2012
Müdigkeit 2
"Viver sempre também cansa!
O sol é sempre o mesmo e o céu azul
ora é azul, nitidamente azul,
ora é cinza, negro, quase verde...
Mas nunca tem a cor inesperada.
O Mundo não se modifica.
As árvores dão flores,
folhas, frutos e pássaros
como máquinas verdes.
As paisagens também não se transformam.
Não cai neve vermelha,
não há flores que voem,
a lua não tem olhos
e ninguém vai pintar olhos à lua.
Tudo é igual, mecânico e exacto.
Ainda por cima os homens são os homens.
Soluçam, bebem, riem e digerem
sem imaginação.
E há bairros miseráveis, sempre os mesmos,
discursos de Mussolini,
guerras, orgulhos em transe,
automóveis de corrida...
E obrigam-me a viver até à Morte!
Pois não era mais humano
morrer por um bocadinho,
de vez em quando,
e recomeçar depois, achando tudo mais novo?"
O sol é sempre o mesmo e o céu azul
ora é azul, nitidamente azul,
ora é cinza, negro, quase verde...
Mas nunca tem a cor inesperada.
O Mundo não se modifica.
As árvores dão flores,
folhas, frutos e pássaros
como máquinas verdes.
As paisagens também não se transformam.
Não cai neve vermelha,
não há flores que voem,
a lua não tem olhos
e ninguém vai pintar olhos à lua.
Tudo é igual, mecânico e exacto.
Ainda por cima os homens são os homens.
Soluçam, bebem, riem e digerem
sem imaginação.
E há bairros miseráveis, sempre os mesmos,
discursos de Mussolini,
guerras, orgulhos em transe,
automóveis de corrida...
E obrigam-me a viver até à Morte!
Pois não era mais humano
morrer por um bocadinho,
de vez em quando,
e recomeçar depois, achando tudo mais novo?"
José Gomes Ferreira, in http://www.citi.pt/cultura/literatura/poesia/
segunda-feira, 19 de novembro de 2012
Neuer Anfang
"Esse longo caminho percorrido
lado a lado, nos bons e maus momentos,
faz de nós dois um ser unificado
pelos mais fundos, ternos sentimentos."
Carlos Drummond de Andrade, Poesia Errante, Rio de Janeiro, Editora Record, 2003:
117
sexta-feira, 16 de novembro de 2012
Letzte Sitzung
"Demorei-me muito tempo ao pé de ti.
As portas fechadas por dentro, como se encerrasses
o amor e a lei. Demorei-me demais. Ao fim da tarde,
nesse mesmo dia que já morreu,
olhámo-nos devagar, mas distraídos. Diria até que anoiteceu.
Nunca falámos do amor que chega tarde.
Nem o interpelámos (como se já não pudesse
ter nome). Fingia ter esquecido o teu corpo
nas muralhas. Nas areias.
Vês aqui alguma figura? Ninguém vê.
Repara no ponto preto que alastra na margem do quadro,
nas minhas lágrimas desse tempo.
Relê."
Luis Filipe Castro Mendes, in "Modos de Música"
terça-feira, 13 de novembro de 2012
Beichte 2
"Nesta última tarde em que respiro
A justa luz que nasce das palavras
E no largo horizonte se dissipa
Quantos segredos únicos, precisos,
E que altiva promessa fica ardendo
Na ausência interminável do teu rosto.
Pois não posso dizer sequer que te amei nunca
Senão em cada gesto e pensamento
E dentro destes vagos vãos poemas;
E já todos me ensinam em linguagem simples
Que somos mera fábula, obscuramente
Inventada na rima de um qualquer
Cantor sem voz batendo no teclado;
Desta falta de tempo, sorte, e jeito,
Se faz noutro futuro o nosso encontro."
António Franco Alexandre, Uma fábula, Assírio & Alvim, Editores, in http://poesiaseprosas.no.sapo.pt
quarta-feira, 7 de novembro de 2012
Beichte 1
faço perguntas às minhas próprias dúvidas e lembro-me de um filme antigo quando percebo que não respondem: silêncio e preto e branco. a sombra de brancas paredes e uma cama vazia. nada é sequer definitivo. a situação é esta: tenho medo. cercam-me por todos os lados que não existem para fugir, e espero pelo incêndio, apenas espero. é preciso regar as flores. sou eu que tenho de decidir e tenho medo de adormecer, tenho medo de não ter mais tempo. não tenho o direito de telefonar para te dizer isso. tudo desaparece antes de ser dito. mas ainda há tempo... se morresse perguntavas: porque não me telefonaste? se telefonasse, perguntavas: sabes que horas são? estou ocupado! ou não atendias. e eu ficava aqui. com a noite ainda mais comprida, com a insónia, com o medo, com as tuas palavras a pegarem-se aos pesadelos. eu ficava aqui em silêncio. porque se eu estivesse única e completa, com as raízes e as cicatrizes, com as cartas que escrevi mentalmente e nunca enviei, tu saberias como chegar às antigas palavras que magoam, por isso eu fico aqui em silêncio e começo a anotar as minhas preocupações, tão importantes apenas para mim. os segredos escondem-se por trás das brancas paredes e de uma cama vazia. não há motivo para te importunar a meio da noite. de que poderíamos falar agora? guardo uma ternura simples, quase dolorosa, muitos silêncios, todas a horas do dia e um poema que se dissolve dentro de mim e que, devagar, sem rosto, desaparece. como se adormecesse... agora, esta voz dirige-se ao teu rosto. a situação é esta...
Leituras de "Gaveta de papéis", de José Luís Peixoto
terça-feira, 6 de novembro de 2012
Erklärung
"desapego /ê/ s.m. (sXV cf. AGG) 1. qualidade ou estado de pessoa desapegada, que revela desamor por alguém (ou grupo de pessoas); despego {era visível o seu d. pelo padrasto} 2. qualidade ou estado de quem demonstra indiferença, desinteresse, desprendimento pelas coisas ou por certa coisa em particular; despego {d. à vida}{d. pelas coisas materiais} ◊ ETIM regr. de desapegar; var. despego, com des- + pego, f. afer. de apego; ver peg- ◊
SIN / VAR
ver sinoníma de desprendimento e desprezo ◊
ANT amor, apego, interesse; ver tb. antonímia de desprendimento, desprezo ◊
HOM desapego (fl. desapegar)."
Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, Ed. Objetiva: Rio de Janeiro, 2001, p. 995
segunda-feira, 5 de novembro de 2012
Freundschaft
“O vosso amigo é o vosso desejo cumprido. É o vosso campo que semeais com amor
e colheis com gratidão. É a vossa mesa servida e o vosso átrio. Apresentais-vos
a ele com a vossa fome e nele procurais a paz. Quando o vosso amigo vos diz o
que pensa, não receeis o “não” do vosso espírito, nem retenhais o “sim”. E
quando estiver silencioso, não deixe o vosso coração de escutar o seu coração;
porque na amizade, todas as ideias, todos os desejos e todas as esperanças
nasceram e foram partilhadas sem palavras e com uma alegria inexprimível. Quando
vos separardes do vosso amigo, não vos entristeçais, porque aquilo que de melhor
amais nele pode tornar-se mais claro na sua ausência; tal como vista da
planície, a montanha é mais nítida para quem a escala. E que não haja outro fim
na amizade que não seja o aprofundar da alma. Porque o amor que não procura
revelar o seu próprio mistério não é amor, mas sim uma rede lançada a um mar sem
peixes, apenas conseguindo prender o supérfluo. E que o melhor que haja em vós
seja para o vosso amigo. E se ele tiver que conhecer o refluxo da vossa maré,
que conheça também o seu fluxo. Pois, para que serve o amigo se o procurais
apenas para matar o tempo? Procurai-o sempre para as horas vivas. Ele vem para
resolver as vossas necessidades, mas não o vosso vazio. E que na doçura da
amizade residam a alegria e a partilha dos prazeres. Porque é no orvalho das
coisas pequenas que o coração encontra a sua manhã e se reanima.”
Kahlil Gibran, O Profeta, Mem Martins: Livros de Vida Editores, 2003: 58-9
sexta-feira, 2 de novembro de 2012
Reine Linguistik
"Tenho uma arma secreta
ao serviço das nações.
Não tem carga nem espoleta
mas dispara em linha recta
mais longe que os foguetões.
Não é Júpiter, nem Thor,
nem Snark ou outros que tais.
É coisa muito melhor
que todo o vasto teor
dos Cabos Canaverais.
A potência destinada
às rotações da turbina
não vem da nafta queimada,
nem é de água oxigenada
nem de ergóis de furalina.
Erecta, na noite erguida,
em alerta permanente,
espera o sinal da partida.
Podia chamar-se VIDA.
Chama-se AMOR, simplesmente."
António Gedeão, Obra Completa, Lisboa: Relógio D'Água, 2004, p. 177
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