terça-feira, 31 de dezembro de 2013
Guck nicht!
"Não olhes.
O mundo está prestes a rebentar.
Não olhes.
O mundo está prestes a despejar a sua luz
E a lançar-nos no abismo das suas trevas,
Aquele lugar negro, gordo e sem ar
Onde nós iremos matar ou morrer ou dançar ou chorar
Ou gritar ou gemer ou chiar que nem ratos
A ver se conseguimos de novo um posto de partida."
Harold Pinter. Várias Vozes. Famalicão: Quasi Edições, 2006, p.174
segunda-feira, 30 de dezembro de 2013
Deformität
"Sabia que se não superasse o seu defeito, que a obrigara a usar um aparelho de aço até aos dez anos, ia ter que suportar que a reduzissem a uma matéria inanimada, como um fantoche. Foi desenvolvendo o espírito de exibição escandalosa, para proibir ameaça da maldade humana pronta a lançar-se sobre o objecto de riso, a sua deformidade.
Aos dez anos, os médicos mandaram retirar o aparelho de tortura. Ema não quis olhar a perna, ligeiramente mais delgada e mais curta."
Agustina Bessa-Luís. Vale Abraão. Lisboa: Guimarães Editores, 2005, p. 223
domingo, 29 de dezembro de 2013
Einsamkeit
" Sea beyond sea, sand after sweep of sand,
Here ivory smooth, here cloven and ridged with flow
Of channelled waters soft as rain or snow,
Stretch their lone length at ease beneath the bland
Grey gleam of skies whose smile on wave and strand
Shines weary like a man's who smiles to know
That now no dream can mock his faith with show,
Nor cloud for him seem living sea or land.
Is there an end at all of all this waste,
These crumbling cliffs defeatured and defaced,
These ruinous heights of sea-sapped walls that slide
Seaward with all their banks of bleak blown flowers
Glad yet of life, ere yet their hope subside
Beneath the coil of dull dense waves and hours?"
A. C. Swinburne, Poemas, Relógio D' Água, 2005, p. 164
sábado, 28 de dezembro de 2013
Eines Tages...
"Berta, a Grande, nunca mais esqueceria aquele olhar azul do anão Gustavo, e pensou que um dia também ela poderia ser feliz. Um dia.
Mas a felicidade nunca mais chegava (...)."
Cuca Canals, Berta a Grande, Editorial Teorema: Lisboa, 1997, 37
quarta-feira, 25 de dezembro de 2013
In weiter Ferne, so nah!
"Aqui não precisas de me procurar
para me encontrares, que eu estou,
omnipresente, em todo o chão que pisas,
duplicando a tua sombra,
deixando um rasto de brisa,
um aroma de urze na marca dos teus passos.
Com esta roupa visitaremos os pátios,
os átrios de dança e do encantamento.
As nuvens aninhadas atrás da lua,
na olorosa paz da madrugada,
são o mapa das errâncias da fala
enquanto o coração, indefeso, capitula. "
José Jorge Letria, in "Capela dos Ócios", http://www.citador.pt
Und es ist wieder Weihnachten!
"Ignoro se poderemos curar-nos de certas coisas. No fundo, desabafar talvez não seja um remédio assim tão eficaz. Talvez, pelo contrário, desabafar sirva para alimentar as feridas, como ao remexermos as brasas de uma fogueira a fim de podermos atear o lume quando assim o desejamos."
Philippe Claudel, O Relatório de Brodeck, Edições Asa: Porto, 2009: 203
sábado, 21 de dezembro de 2013
So einfach...
"O tempo passa? Não passa
no abismo do coração"
Carlos Drummond de Andrade, in 'Amar se Aprende Amando'
segunda-feira, 16 de dezembro de 2013
Abschluss
"Quanto a mim…
O amor passou. Mas conservo-lhe uma affeição inalteravel, e não esquecerei nunca - nunca, creia - (...) a sua ternura, a sua dedicação, a sua indole amoravel. Pode ser que me engane, e que estas qualidades, que lhe attribúo, fossem uma illusão minha; mas nem creio que fossem, nem, a terem sido, seria desprimor para mim que lh’as attribuisse. (...)
Peço que não faça como a gente vulgar, que é sempre reles; que não me volte a cara quando passe por si, nem tenha de mim uma recordação em que entre o rancor. Fiquemos, um perante o outro, como dois conhecidos desde a infancia, que se amaram um pouco quando meninos, e, embora na vida adulta sigam outras affeições e outros caminhos, conservam sempre, num escaninho da alma, a memoria profunda do seu amor antigo e inutil."
Fernando Pessoa, Cartas de Amor a Ophélia Queiroz. Organização, posfácio e notas de David Mourão-Ferreira. Guimarães Editores: Lisboa. 2009: 88-89
domingo, 15 de dezembro de 2013
terça-feira, 10 de dezembro de 2013
Dieser Tag (Ein Jahr)
"Não saibas: imagina...
Deixa falar o mestre, e devaneia...
A velhice é que sabe, e apenas sabe
Que o mar não cabe
Na poça que a inocência abre na areia.
Sonha!
Inventa um alfabeto
De ilusões...
Um á-bê-cê secreto
Que soletres à margem das lições...
Voa pela janela
De encontro a qualquer sol que te sorri!
Asas? Não são precisas:
Vais ao colo das brisas,
Aias da fantasia."
Miguel Torga, "Instrução Primária", in Antologia Poética, Coimbra: Edição do Autor, 1994, p. 367
terça-feira, 3 de dezembro de 2013
Erklärung
"Percebo hoje a
razão por que Auden disse que qualquer casamento duradoiro é mais apaixonante
do que a mais acesa das paixões. Guardar é um trabalho custoso. As coisas têm
uma tendência horrível para morrer. Salvá-las desse destino é a coisa mais
bonita que se pode fazer. Haverá verbo mais bonito do que «salvaguardar»? É
fácil uma pessoa bater com a porta, zangar-se e ir embora. O que é difícil é
ficar. (…)
Preservar é
defender a alma do ataque da matéria e da animalidade. Deixadas sozinhas, as
coisas amarelecem, apodrecem e morrem. Não há nada mais fácil do que esquecer o
que já não existe. Começar do zero, ao contrário do que sempre pretenderam
todos os revolucionários do mundo, é gratuito. Faz com que não seja preciso
estudar, aprender, respeitar, absorver, continuar. Criar é fácil. As obras de
arte criam-se como as galinhas. O difícil é continuar."
Miguel Esteves
Cardoso, in 'As Minhas Aventuras na República Portuguesa'
domingo, 1 de dezembro de 2013
Wohin?
"Eu venho do sonho e fujo da vida.
Errei no caminho para a paz prometida.
Só sei que me chama um canto do mar.
E a nau dos sonhos no céu a varar.
Ó meu capitão da barca perdida
A errar entre o sonho e o engano da vida!"
Natália Correia, O Sol nas Noites e o Luar nos Dias I, Projornal, 1993, p. 19
quarta-feira, 27 de novembro de 2013
Finsternis
"Carregou consigo o corpo doente, um ferido incómodo, durante os dias. A leveza fora substituída por miséria e cansaço. Saciada - um animal que matara sua sede inundando seu corpo de água. Mas ansiosa e infeliz como se apesar de tudo restassem terras ainda não molhadas, áridas e sedentas. Sofreu sobretudo de incompreensão, sozinha, atónita. Até que encostando a testa, no vidro da janela - rua quieta, a tarde caindo, o mundo lá fora -, sentiu o rosto molhado. Chorou livremente, como se esta fosse a solução. As lágrimas corriam grossas, sem que ela contraísse um só músculo da face. Chorou tanto que não soube contar. Sentiu-se depois como se tivesse voltado às suas verdadeiras proporções, miúda, murcha, humilde. Serenamente vazia."
Clarice Lispector, Perto do Coração Selvagem, Lisboa: Relógio D' Água, 2000, p. 97
sábado, 23 de novembro de 2013
Trauer 4
"este dia
este perverso dia
que veio depois de ontem"
Paulo Leminski, "Toda Poesia", São Paulo: Editora Schwarcz, 2013, p. 24
domingo, 17 de novembro de 2013
Träne
"As palavras depõem
contra o coração,
que não quer dizer nada
nem ouvir nada."
Manuel António Pina, "Nenhuma Palavra e Nenhuma Lembrança", Lisboa: Assírio & Alvim, 1999, p. 15
sexta-feira, 15 de novembro de 2013
Nichts
"Ficou para trás, quente, a vida,
a marca colorida dos meus olhos, o tempo
em que ardiam no fundo de cada vento
mãos vivas, cercando-me...
Ficou a carícia que não encontro
senão entre dois sonos, a infinita
minha sabedoria em pedaços. E tu, palavra
que transfiguravas o sangue em lágrimas.
Nem sequer um rosto trago
comigo, já traspassado em outro rosto
como esperança no vinho e consumado
em acesos silêncios...
Volto sozinha
entre dois sonos lá 'trás, vejo a oliveira
rósea nas talhas cheias de água e lua
do longo inverno. Torno a ti que gelas
na minha leve túnica de fogo."
Cristina Campo, O Passo do Adeus. Lisboa: Assírio & Alvim, 2002, p. 25
quinta-feira, 14 de novembro de 2013
Gespräch 3
"Não me compreendo nem compreendo os outros. Tudo me parece inútil, e agarro-me com desespero a um fio de vida, como um náufrago a um pedaço de tábua.
Não sei o que é a vida. Chamo vida ao espanto. Chamo vida a esta saudade, a esta dor; chamo vida e morte a este cataclismo. É a imensidade e um nada que me absorve; é uma queda imensa e infinita, onde disponho de um único momento."
Raúl Brandão, Húmus, Ribeirão: Edições Húmus, 2010, p.223
quarta-feira, 13 de novembro de 2013
Gespräch 2
"Eu gostaria da sua companhia. Mas não vejo em que meus pensamentos nem minhas palavras, nem os meus gestos sirvam de alguma coisa para você."
Gastão de Holanda, Os Escorpiões, Lisboa: Livros do Brasil, s. d., p.195
terça-feira, 12 de novembro de 2013
Geheimnis
"É preciso entrar na paisagem,
espreitar consecutivamente o mundo.
Não há ponte entre duas margens,
só quem habita a corrente
pode aspirar a todas as moradas."
Vasco Gato, Imo, V.N. Famalicão: Quasi Edições, 2003, p. 92
sábado, 9 de novembro de 2013
Zerschlagt
"relembramos pessoas e pensamos em como foi, afinal, tão fácil vivermos esquecidos delas e como se torna tão cruel que assim seja. vemos os seus retratos, recordamos a simpatia dos momentos em que coincidimos, e depois medimos a distância a que estamos desses momentos, dos sentimentos e, sobretudo, da memória. e percebemos que não nos recordaríamos daquela pessoa não fora o acaso de a reconhecermos naquela definição horizontal, já sem poder escapar. e o que será isso senão uma crueldade dos caminhos da vida. uma crueldade do deve e haver da vida. uma crueldade do comércio afectivo de que somos capazes. incapazes de conservar tudo e todos, incapazes de sermos por tudo e de sermos por todos."
valter hugo mãe, a máquina de fazer espanhóis , Editora Objectiva, 2013, p. 121
segunda-feira, 4 de novembro de 2013
Ab und zu...
"É tarde já, vão sendo horas - horas de quê? De nada. De existir. De olhar ainda a luz, a vida. De absorver em mim o universo e levá-lo comigo sem nada desperdiçar. De exercer o ouvido enquanto ouve, os olhos, o corpo inteiro para que nada fique dele sem se cumprir. De encher os bolsos de tudo o que se me dá ou sonhar mesmo o que me não deram e deixar perder nada por distracção. De dizer a palavra vida e tudo nela florir logo na sua existência para levar comigo essa vida inteira e tê-la comigo na morte."
Vergílio Ferreira, Escrever, Lisboa: Bertrand Editora, 2001 , pp. 26-7
domingo, 3 de novembro de 2013
Die Lebende
"- Agora vai - disse ela."
Karen Blixen, A Festa de Babette e outras histórias, Ed. Asa: Lisboa, 2002, p. 213
quinta-feira, 31 de outubro de 2013
Bevor du gehst...
"Despede-te de mim, bate devagar à porta:
tenho vontade de recomeçar, reerguer escombros,
ruínas, tarefas de pão e linho, não dar
nome às coisas senão o de um vago esquecimento,
abandono. Despede-te de mim como se a vida
começasse agora, não me procures onde
a memória arde e o destino se ausenta.
Tudo são banalidades, afinal, quando assim
se recomeça e a vida falha como um material
solar e ilhéu. Levamos poucas coisas, basta
um pouco de ar, os objectos fixos, em repouso,
os muros brancos de uma casa, o espaço
de uma mão. Arrumo as malas e os sinais,
aquilo que nos adormece em plena tempestade."
Francisco José Viegas, "De Amor" in Os Outros. Antologia de Poesia Portuguesa: Anos 80 e depois . Lisboa: Editora Ausência, 2004, p.235
terça-feira, 29 de outubro de 2013
Verlust 7
os lugares nunca partem
espalhamos neles os momentos
e os traços dos amigos
com eles dialogamos
nos momentos de maior solidão
e tristeza
e a eles regressamos
a saciar a saudade
sábado, 26 de outubro de 2013
Unvollständige Dialoge
"- (...) Não quero dizer tanto. Mas você é áspero. Com as pequenas do Marechal você não é tão brusco, tenho a certeza. Queria saber se é sòmente comigo ou com todo mundo. (...) É uma pena que a gente não possa dizer tudo. Quanta coisa é intraduzível dentro de nós. Em certas horas, eu queria que você estivesse perto de mim porque então eu saberia dizer melhor as coisas do que agora. Agora elas me parecem confusas. Mas naquelas horas não. Tudo é claro. Parece que a ausência favorece e enriquece a nossa imaginação. Quando estou só penso e converso muito melhor. A solidão nos ajuda realmente. Você terá razão nesse ponto.
- Não sou um solitário.
- Mas gosta de estar só. Ou melhor, aproveita bem o silêncio. Nem todo o mundo sabe aproveitar o silêncio. Há pessoas que só estão bem no tumulto, no ruído, na confusão. Estas não sabem aproveitar os momentos de absoluta mudez das coisas, quando então, as coisas falam melhor do que nunca. Aparentemente eu sou uma mulher ruidosa, reconheço. Mas sei aproveitar os meus momentos de silêncio, no meu quarto."
Gastão de Holanda, Os Escorpiões, Lisboa: Livros do Brasil, s. d., p.193-194
Die Abwesenheit eines Freundes
"Nós não podemos passar a vida perguntando. Haverá o dia que trará resposta."
Gastão de Holanda, Os Escorpiões, Lisboa: Livros do Brasil, s. d., p.137.
sexta-feira, 25 de outubro de 2013
Traurig
"Havia em frente dela um espelho. A sua imagem apresentava-se pálida, abatida.
- Nem bonita sou - pensou, mas sem se importar."
Carolina Nabuco, A Sucessora, Lisboa: Livros do Brasil, s. d., p. 153-4
terça-feira, 22 de outubro de 2013
Angst
"Este é o tempo todo que me falta
e nem é muito nem pouco."
Luiza Neto Jorge, Poesia , Lisboa: Assírio & Alvim, 2012, p. 165
segunda-feira, 21 de outubro de 2013
Trauriger Abschied 1
"Agora, falarei. Este silêncio entre nós não era natural..."
Carolina Nabuco, A Sucessora, Lisboa: Livros do Brasil, s. d., p.204
sábado, 19 de outubro de 2013
Samstags: Geschichten von Digen, die nicht zurückkommen
"Mais tarde, também eu arrancarei o coração do peito para o secar como um trapo e usar limpando apenas as coisas mais estúpidas.
Quando empedernir, esquecido de toda a humidade da vida, ficará entre as loiças, como inútil souvenir ou peça de mesa para uma festa que nunca acontecerá.
Terei sempre pena dele. Estará como um animal antigo que perdeu a qualidade dos novos dias. Sem visitas. Será apenas a humilhação entristecedora de todos os afetos.
Poderei, nas arrumações, preparando alguma partida, aligeirando os fardos, deixá-lo no lixo para que a natureza o recicle com as suas ganas aturadas de recomeçar tudo. Até lá, a minha coragem assume apenas a evidência de matéria morrendo. Começarei morrendo pelo coração.
Gostarei sempre dele, como se gosta do que está extinto, sejam os dragões, os anjos ou as distâncias. Histórias de coisas que não voltam.
O meu coração sem visitas perderá a memória e, quando nos separarmos de vez, certamente será mais feliz."
valter hugo mãe, A Desumanização, Porto: Porto Editora, 2013, p.223
quinta-feira, 17 de outubro de 2013
Hunger
"Sara senta-se nos degraus das casas destruídas
Sara é o nome do deserto
É o nome da videira estéril
É o nome à espera de ter filhos
Sara está velha de estar
Sozinha. Está sentada e desfaz
A bainha dos seu vestidos"
Daniel Faria, "Sara", in Poesia, Lisboa: Assírio & Alvim, 2012, p. 149
sábado, 12 de outubro de 2013
Unterhaltung 3
"E por cada instante me deixava levar pela ideia boa de partilhar e perdoar-me por ter crescido a partir de tanta insignificância. Redimia-me lentamente."
valter hugo mãe, A Desumanização, Porto: Porto Editora, 2013, p.179
terça-feira, 8 de outubro de 2013
Unterhaltung 2
"(...) pensava que é impossível predizer o futuro com qualquer grau de precisão, que é impossível ensaiar a vida. Uma falta no cenário, um rosto na audiência, uma irrupção da audiência no palco, e todos os nossos gestos cuidadosamente planeados nada significam ou significam muito."
E. M. Forster, Um quarto com vista, Lisboa: Relógio D' Água, 2011, p.139
segunda-feira, 30 de setembro de 2013
Wünsch 2?
(Foto de M.J.M., 08/2004)
"O Einar pediu: amanhã, ainda cedo, sobes ao cabeço. Perguntei porquê. Porque sim. Vou lá encontrar-me contigo e fugimos daqui. Vais. Claro que fujo. Sobes ao cabeço e esperas por mim. Se houver baleias, conta-as. Eu disse que nunca eram muitas. Ele sorriu. Achei que o Einar estaria mais sossegado. Pus-lhe a mão no peito. Sacudi. Lembras-te. Dizias que me sacudias a terra do coração. Tenho de fazer o mesmo contigo. Estás um bocado morto. Ele anuiu. E eu sorri."
valter hugo mãe, A Desumanização, Porto: Porto Editora, 2013, p.229
domingo, 29 de setembro de 2013
Wünsch 1
"E eu lembrava-me, diante dos gatos de cristal, e pensava assim: amanhã, levantou-se uma montanha de cristal do esconso da charneca e voou. Deixou-nos sossegar. Amanhã uma montanha foi embora debaixo de nossos pés. E ficámos numa pedra segura. Outra vez quieta. Sem segredos. O Einar abraçou-me um pouco mais apertada. Eu não lhe dissera nada, não pedira nada. Ele começava a pressentir a minha tristeza, sozinho."
valter hugo mãe, A Desumanização, Porto: Porto Editora, 2013, p.160
sexta-feira, 27 de setembro de 2013
Träne...
"Quanta tristeza e amargura afoga
Em confusão a estreita vida! Quanto
Infortúnio mesquinho
Nos oprime supremo!
Feliz ou o bruto que nos verdes campos
Pasce, para si mesmo anónimo, e entra
Na morte como em casa;
Ou o sábio que, perdido
Na ciência, a fútil vida austera eleva
Além da nossa, como o fumo que ergue
Braços que se desfazem
A um céu inexistente."
Odes de Ricardo Reis . Fernando Pessoa. Lisboa: Ática, 1946 (imp.1994), p. 101.
segunda-feira, 23 de setembro de 2013
Uhr
"Para um amigo tenho sempre um relógio
esquecido em qualquer fundo de algibeira.
Mas esse relógio não marca o tempo inútil.
São restos de tabaco e de ternura rápida.
É um arco-íris de sombra, quente e trémulo.
É um copo de vinho com o meu sangue e o sol."
António Ramos Rosa, in "Viagem Através de uma Nebulosa" (http://www.citador.pt.)
domingo, 22 de setembro de 2013
Unterhaltung 1
"Quando falo, não entrego nada. Deixo mesmamente despido quem tem frio e não encho a barriga dos que têm fome. Quando falo, o que faço é perto de não fazer nada e, no entanto, cria-nos a sensação de fazer tanto. Como se falando pudéssemos fazer tudo. O que digo é só bom porque pode ser dito, mas não se põe de parede para a casa ou de barco para a fuga. Não podemos navegar numa palavra. Não podemos ir embora. Falar é ficar. Se falo, é porque ainda não fui. Ainda aqui estou. (...) Preciso de aprender a calar-me."
valter hugo mãe, A Desumanização, Porto: Porto Editora, 2013, p.53
sábado, 21 de setembro de 2013
Unmenschlich
"As palavras não são nada. Deviam ser eliminadas. Nada do que possamos dizer alude ao que o mundo é. Com trinta e duas letras num alfabeto não criamos mais do que objetos equivalente entre si, todos irmanados na sua ilusão. As letras da palavra cavalo não galopam, nem as do fogo bruxuleiam. E que importa como se diz cavalo ou fogo se não se autonomizam do abecedário. Nenhuma pedra se entende por caracteres. As pedras são entidades absolutamente autónomas às expressões. As pedras recusam a linguagem. Para a linguagem as pedras reclamam o direito de não existir. Se as nomeamos não estamos senão a enganarmo-nos voluntariamente. As pedras nunca enganaremos. Elas sabem que existem por outros motivos e talvez suspeitem que o nosso desejo de falar seja só um modo menos desenvolvido de encarar a evidência de existir."
valter hugo mãe, A Desumanização, Porto: Porto Editora, 2013, p. 46
terça-feira, 17 de setembro de 2013
Traurig...
"A Dor - tem um Elemento de Vazio -
Não se consegue lembrar
De quando começou - ou se houve
Um tempo em que não existiu -
Não tem Futuro - para lá de si própria-
O seu Infinito contém
O seu Passado - iluminado para aperceber
Novas Épocas - de Dor."
Emily Dickinson, Poemas e Cartas, Edições Cotovia, 2000, p. 79
sexta-feira, 13 de setembro de 2013
Geburtstagswünsche
"Oh me! Oh life! of the
questions of these recurring,
Of the endless trains of the
faithless, of cities fill’d with the foolish,
Of myself forever reproaching
myself, (for who more foolish than I, and who more faithless?)
Of eyes that vainly crave the
light, of the objects mean, of the struggle ever renew’d,
Of the poor results of all, of
the plodding and sordid crowds I see around me,
Of the empty and useless years
of the rest, with the rest me intertwined,
The question, O me! so sad,
recurring—What good amid these, O me, O life?
Answer.
That you are here—that life
exists and identity,
That the powerful play goes
on, and you may contribute a verse."
Walt Whitman, in http://www.poetryfoundation.org/poem/182088
segunda-feira, 9 de setembro de 2013
Mitteilung
"Queria dizer-te uma coisa simples: a tua
ausência dói-me."
Nuno Júdice, Ausência, in Pedro Lembrando Inês, Lisboa: Publicações D. Quixote, 2001, p. 18
Einsam...
"Um mar rodeia o mundo de quem está só. É
o mar sem ondas do fim do mundo. A sua água
é negra; o seu horizonte não existe. Desenho
os contornos desse mar com um lápis de
névoa. Apago, sobre a sua superfície, todos
os pássaros. Vejo-os abrigarem-se da borracha
nas grutas do litoral: as aves assustadas da
solidão. «É um mundo impenetrável», diz
quem está só. Senta-se na margem, olhando
o seu caso. Nada mais existe para além dele, até
esse branco amanhecer que o obriga a lembrar-se
que está vivo. Então, espera que a maré suba,
nesse mar sem marés, para tomar uma decisão."
Nuno Júdice, Solidão, in Pedro Lembrando Inês, Lisboa: Publicações D. Quixote, 2001, p. 21
sexta-feira, 6 de setembro de 2013
Versuch
"eu sabia bem o que isso era. o que era ultrapassarmos as dores até que os dias, só por si, nos começassem a parecer valiosos o suficiente. até chegarmos a um momento em que a luz do sol nos parece uma dádiva inestimável e vale a pena viver apenas para fazermos a fotossíntese das tardes, melhor ainda com uma conversa despreocupada com os colegas."
valter hugo mãe, a máquina de fazer espanhóis , Editora Objectiva, 2013, p.170
Verachtet 1
"bastava-me isso, que um dia genuinamente se arrependessem e mudassem de conduta para que fosse possível acreditarem uns nos outros também. mais do que isso, sinto apenas angústia."
valter hugo mãe, a máquina de fazer espanhóis , Editora Objectiva, 2013, p. 287
quinta-feira, 5 de setembro de 2013
Nimmermehr
"Na noite em que o aguardava, ficou desperta até aos primeiros alvores da manhã. Apertou-se-lhe o coração, apreensiva, mas desculpou-o. Nas noites seguintes esperou-o em vão."
Henrique de Senna Fernandes, "A-Chan, a Tancareira", in Nam Van - Contos de Macau, Instituto Cultural de Macau, 1997, p. 15
terça-feira, 3 de setembro de 2013
Freunde?
"Existem amizades teimosas, que estão constantemente a ser reatadas, apesar de todas as atribulações a que foram sujeitas. Há feitios que não se suportam e, apesar disso, as amizades perduram."
Afonso Cruz, Jesus Cristo bebia cerveja, Lisboa: Santillana Editores, 2012, p. 179
segunda-feira, 2 de setembro de 2013
quinta-feira, 29 de agosto de 2013
Unsere wehmütigen Engel
"não me cheguei ao muro, nem ao portão, não atravessei sequer a exígua estrada que separa o cemitério do lar, fiquei do outro lado a ver os mármores e os terríveis vultos religiosos, com aspecto de mártir nada apaziguador, e fiquei a ver as flores e fiquei a ver o modo como iam secando decadentes e esperavam por serem substituídas."
valter hugo mãe, a máquina de fazer espanhóis , Editora Objectiva, 2013, pp. 85-86
quarta-feira, 28 de agosto de 2013
Die Weise von Liebe und Tod
"fica-se muito zangado como pessoa. não se criem dúvidas acerca disso. fica-se zangado e deseja-se aos outros pouco bem, e o mal que lhes pode acontecer é-nos indiferente ou, mais sinceramente, até nos reconforta, isso sim, como um abraço de embalo, para que não se ponham por aí a arder como o sol e, sobretudo, não nos falem com uma alegriazinha ingénua, de tempo contado, e nos façam perceber o quanto éramos também ingénuos e nunca nos preparáramos para a derrocada de todas as coisas. nunca nos preparamos para a realidade. passamos a ser cidadãos terrivelmente antipáticos, mesmo que façamos uma gestão inteligente desse desprezo que alimentamos crescendo. e só não nos tornamos perigosos porque envelhecer é tornamo-nos vulneráveis e nada valentes, pelo que enlouquecemos um bocado e somos só como feras muito grandes sem ossos, metidas dentro de sacos de pele imprestáveis que não servem para nos impor verticalidade nem nas pequenas batalhas. como faria falta ferrarmos toda a gente e vingarmo-nos do mundo por manter as primaveras e a subitamente estúpida variedade das espécies e as manifestações do mar e a expectativa do calor e a extensão dos campos e das flores e das arvorezinhas cheias de passarinhos cantantes aos quais devíamos torcer o pescoço para nunca mais interferirem com as nossas feridas profundas."
valter hugo mãe, a máquina de fazer espanhóis , Editora Objectiva, 2013, pp. 28-29
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