terça-feira, 12 de março de 2013

Lieber O. C., es ist zu spät...



"Mortalmente ferido como o último dos bichos
reclinou a cabeça, ainda há pouco pensativa, para sempre
e agora há muitos passos apressados pela casa
pois deixou repousar enormes mãos nas mais pequenas coisas
e levedado cresce e ultrapassa o circulo dos gestos cautelosos
Nada o detém nenhuma mão amarra aquele ser distante
irónico petrificado calmo diferente inacessível
E os anos resignadamente vão entrecobrindo os membros
do morto mais quebrado em praias entrementes
e a morte é uma coisa extraordinária

(...)

O nosso tempo cobre-te de pó e estás todo deitado e fixado e resignado
Cumpriste quanto foste e o que devias ser já é
Tiveste infância e tens somente agora
a lisa perspectiva de uma lousa
E o que será de nós? Teu repetido rosto diz-nos incessantemente
que cada um de nós apenas é também simples questão de tempo
Havia vento havia luz e mesmo isso esquecemos
Estamos por tudo e abdicar é coisa de somenos
Só essa longa posição vale afinal a pena
Ao menos exististe e conversaste e voltaste-te pra mim
amigo que partiste direito enorme triste?"

Ruy Belo, Todos os Poemas, Lisboa: Assírio & Alvim, 2000, pp. 175-177

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