sexta-feira, 25 de abril de 2014

Heute



“É uma flor e quem não sabe o que é uma flor não merece a vida.
Veste de mansinho e simples. O seu enfeite é só a cor.
Há versos na sua maneira de sorrir, que é a sua maneira de olhar.
O seu perfume ninguém o sente de tão puro:
respira-se, existe na maravilha de pensarmos nele.
É uma flor. Uma flor que havia de vir.
Mas o pobre do mundo não daria pela sua falta se não tivesse                                                               [vindo.
É uma flor que não dá por si porque ninguém dá por ela.
Uma flor que eu não digo onde está.”

Sebastião da Gama, O Segredo é Amar, Lisboa: Edições Ática, 1986, p. 25

quarta-feira, 23 de abril de 2014

Abwarten...


"Se de dentro do quarto,
essa nuvem saltasse para o meio desta sala,
arrastando consigo
um pedaço de cume de montanha
ou talvez a janela de palácio
ou canto de telhado

Com estes laivos de papel pintado
flutuando no ar,
podia mesmo assim falar de ti?

Que distracção me encantaria os olhos
se, em vez de os fechar tanto,
a tua imagem aparecesse
aqui
flutuando também
a preto e branco e várias dimensões?

Serias tão real como essa nuvem,
estaria a tua imagem docemente
debruçada em janela
ou em telhado,
ruindo,
inevitável?

Sob o peso de neve que inventei
e agora trago aqui,
faço-te recuar de entre esses laivos
de papel pintado,

e um astro era preciso

Sentar-me-ei então
sossegada na sala, à espera do degelo,
de tempos mais modernos,
de uma cena mais clara
de onde irrompesse a ilha ainda intacta,
uma janela e sol

Como uma iluminura muito bela
de uma cena de amor
de onde uma língua nova
resvalasse

em paz - "


Ana Luísa Amaral, "Linguagens" in Os Outros. Antologia de Poesia Portuguesa: Anos 80 e depois . Lisboa: Editora Ausência, 2004, pp. 81-2.

terça-feira, 22 de abril de 2014

Bitte antworte mir!



   "Agora sei que aquele dia foi, para mim, como o flash de um fotógrafo. Ainda não estava em pose, e esse flash cegou-me. A minha existência parou nesse preciso momento. Os anos que vivi depois ficaram contidos numa fracção de segundo.
   Nos romances ou nas notícias de jornal, ouve-se falar muitas vezes do pressentimento. De repente, uma pessoa pressente que está para acontecer qualquer coisa grave e essa coisa acaba mesmo por acontecer. Naquela manhã, não me apercebi de nada."

Susanna Tamaro, Responde-me, Lisboa:Editorial Presença, 2001, p. 121


domingo, 20 de abril de 2014

Mein Freund...



"- Você é malvado, Menino Jesus. Eu que pensei que você ia nascer Deus essa vez e você faz isso comigo? Por que você não gosta de mim como dos outros meninos? Eu fiquei bonzinho. Não briguei mais, estudei as lições, deixei de falar palavrão. Nem bunda mais eu falava. Por que você faz isso comigo, Menino Jesus? Vão cortar o meu pé de Laranja Lima e nem por isso eu me zanguei. Só chorei um pouquinho... E agora... E agora...

(...)

Agora sabia mesmo o que era a dor. Dor não era apanhar de desmaiar. Não era cortar o pé com cacos de vidro e levar pontos na farmácia. Dor era aquilo, que doía o coração todinho, que a gente tinha que morrer com ela, sem poder contar para ninguém o segredo. Dor que dava desânimo nos braços, na cabeça, até na vontade de virar a cabeça no travesseiro.
     E a coisa piorava."

José Mauro de Vasconcelos, Meu Pé de Laranja Lima, São Paulo: Melhoramentos, 1968, pp. 172, 174

quinta-feira, 17 de abril de 2014

Träne



"Pela primeira vez vi um cadáver. É quarta-feira, mas é como se fosse domingo, porque não fui à escola e vestiram-me este fato de bombazina verde que me fica apertado. Pela mão da mamã, seguindo o meu avô, que tacteia a bengala a cada passo para não tropeçar nas coisas (não vê bem na penumbra e coxeia), passei em frente do espelho da sala e vi-me de corpo inteiro, vestido de verde e com este laço branco engomado que me aperta de um lado do pescoço. Vi-me na redonda lua manchada e pensei: Aquele sou eu, como se hoje fosse domingo."

                                                                                                    Gabriel García Márquez, A Revoada, Lisboa: Quetzal Editora, 2002, p. 11

Edoi lelia doura



"Eu velida nom dormia,
lelia doura
e meu amigo venia,
edoi lelia doura.

nom dormia e cuidava
lelia doura
e meu amigo chegava,
edoi lelia doura."


Alexandra Lucas Coelho, e a noite roda, Lisboa: Edições Tinta da China, 2014, p. 241

quarta-feira, 16 de abril de 2014

Zuletzt



"Seja como for, em dezembro (...) fica tudo escuro e o meu instinto de sobrevivência tenta acreditar no que não se vê. Algum dia vais reaparecer.
Mas como tu e eu sabemos, até hoje esse dia não aconteceu. (...)


Semanas, meses, anos: nem uma palavra. (...)


Agora volto a perguntar, como os gregos quando alguém morria: tinha paixão? Sim, mas a paixão era a sua fronteira. Uma parte ia esgotar a outra e antes disso ele salvou-se."


Alexandra Lucas Coelho, e a noite roda, Lisboa: Edições Tinta da China, 2014, pp. 235, 239, 240 

terça-feira, 15 de abril de 2014

Ebenso...



"Mesmo se não posso falar-te do meu amor
se não digo nada dos teus cabelos, dos teus olhos, dos teus lábios;
o teu rosto continua gravado no meu espírito
o som da tua voz continua gravado na minha memória
E aqueles dias de setembro [ler agosto] que me aparecem nos sonhos
dão forma e cor às minhas palavras, às minhas frases
em qualquer ideia que me surja, seja qual for o assunto"


 Alexandra Lucas Coelho, e a noite roda, Lisboa: Edições Tinta da China, 2014, p. 122 (Citando Kavafis)

domingo, 13 de abril de 2014

Gespräch 5



     "Anuncia-se a doença: onde estás, afinal? É aqui que a moral se desloca, a doença desprende-a do seu lugar comum.
     Continuo a ver o mal disto. Como o anjo de Walter Benjamin tenho a cara voltada para trás, para o desastre que me antecede. Não posso dizer que não sei: eu vejo. Mas é para a frente que caminho. Se for amor, deixará de ser crime."

                         Alexandra Lucas Coelho, e a noite roda, Lisboa: Edições Tinta da China, 2014, p. 66

sábado, 12 de abril de 2014

Gespräch 4




    "Dizer que penso em escrever-te é redundante, porque desde que nos conhecemos passeio-me como se fôssemos dois, em Barcelona e por toda a parte. 
  Talvez a nossa história seja o que já existiu, talvez só tenha existido porque não pode existir, é possível que estando juntos nos achássemos distantes. Não queres fazer-me mal e não queres ser desiludido, eu também não, tudo isso é medo. Tenho a certeza que pensaste nisso um milhão de vezes.
  Não sabemos, claro. O que sabemos é que estamos aqui, ainda. Sem esquecimento. Desde há quanto tempo?
  Falo do que encontro deste lado, até hoje. És tu que trago comigo, ainda, sempre. 
   Um amor de um dia ou de uma vida, qual é a nossa história, era preciso sabê-lo a dois. Sinto-me inteiramente livre para o saber, da mesma forma que me sentirei inteiramente livre se o teu caminho for outro."

Alexandra Lucas Coelho, e a noite roda, Lisboa: Edições Tinta da China, 2014, p. 194

quarta-feira, 9 de abril de 2014

Und zuletzt Liebe...



"Ainda que eu fale as línguas dos homens e dos anjos, se não tiver amor, sou como um bronze que soa ou um címbalo que retine. Ainda que eu tenha o dom da profecia e conheça todos os mistérios e toda a ciência, ainda que eu tenha tão grande fé que transporte montanhas, se não tiver amor, nada sou. Ainda que eu distribua todos os meus bens e entregue o meu corpo para ser queimado, se não tiver amor, de nada me aproveita. O amor é paciente, o amor é prestável, não é invejoso, não é arrogante nem orgulhoso, nada faz de inconveniente, não procura o seu próprio interesse, não se irrita nem guarda ressentimento. Não se alegra com a injustiça, mas rejubila com a verdade. Tudo desculpa, tudo crê, tudo espera, tudo suporta. O amor jamais passará. As profecias terão o seu fim, o dom das línguas terminará e a ciência vai ser inútil. Pois o nosso conhecimento é imperfeito e também imperfeita é a nossa profecia. Mas, quando vier o que é perfeito, o que é imperfeito desaparecerá. 
Quando eu era criança, falava como criança, pensava como criança, raciocinava como criança. Mas, quando me tornei homem, deixei o que era próprio de criança. Agora, vemos como num espelho, de maneira confusa; depois, veremos face a face. Agora, conheço de modo imperfeito; depois, conhecerei como sou conhecido. Agora permanecem estas três coisas: a fé, a esperança e o amor; mas a maior de todas é o amor."

Primeira Epístola de S. Paulo aos Coríntios, in http://www.capuchinhos.org/biblia/index.php?title=1Cor_13

Immer noch... Sehnsuch...



memórias de tempo por viver
memórias de vidas suspensas
memórias de sombras transfiguradas
memórias de passos errantes
memórias

Freundschaft


"Porque pensar? recordar? convocar o passado que nada aqui tem que fazer? A tua vida são os estritos limites em que tens de te mover, cada momento irredutível em que tens de existir. (...) Ouço o tempo no relógio, no seu bater compassado. E assim me parece que se me levantasse, fosse cuidar já do que é preciso, de que serve ter pressa? dilatar o mais possível cada instante que passa, olhar em volta e ver e ouvir. A vida está tão cheia de mistério, de coisas novas.Ver as cores, ouvir bem os sons que nos rodeiam - canta! Ver, ouvir, aspirar os perfumes que passam na aragem, tocar os volumes das coisas, o macio deste tecido do sofá. Recuperar a virgindade de ser para ser em toda a plenitude. Absorver intensamente a vida que ainda tiver a viver. Oh, para quê. Toda a minha razão de ser deve estar na integração de mim, do meu ser nulo a prestações - e todavia. É bom recordar. Recuperar a vida desde onde ela morreu."

Vergílio Ferreira, para sempre, Lisboa: Bertrand Editora, 2001 , p. 199