domingo, 24 de julho de 2016

Streichhölzer




    "Como vê, todos temos no nosso interior os elementos necessários para produzir fósforos. Mais ainda, deixe-me dizer-lhe uma coisa que não confiei ainda a ninguém. A minha avó tinha uma teoria muito interessante, dizia que embora todos nasçamos com uma caixa de fósforos no nosso interior, não os podemos acender sozinhos, precisamos, como na experiência, de oxigénio e da ajuda de uma vela. Só que neste caso o oxigénio tem de vir, por exemplo, do hálito da pessoa amada; a vela pode ser qualquer alimento, música, carícia, palavra ou som que faça disparar o detonador e assim acender um dos fósforos. Por momentos sentir-nos-emos deslumbrados por uma intensa emoção. Dar-se-á no nosso interior um agradável calor que irá desaparecendo pouco a pouco conforme passa o tempo, até vir uma nova explosão que o reavive. Cada pessoa tem de descobrir quais são os seus detonadores para poder viver, pois a combustão que se dá quando um deles se acende é que alimenta a alma de energia. Por outras palavras esta combustão é o seu alimento. Se uma pessoa não descobre a tempo quais são os seus próprios detonadores, a caixa de fósforos fica húmida e já nunca poderemos acender um único fósforo.
     Se isso chegar a acontecer a alma foge do nosso corpo, caminha errante pelas trevas mais profundas procurando em vão encontrar alimento sozinha, não sabendo que o corpo que deixou inerme, cheio de frio, é o único que poderia dar-lho.
     Como eram certas aquelas palavras! Se havia alguém que soubesse isso era ela. Infelizmente, tinha de reconhecer que os seus fósforos estavam cheios de mofo e humidade. Ninguém podia voltar a acender um só que fosse."

Laura Esquível, Como água para chocolate, Ed. Asa.: Porto, 1993, pp. 109-110

segunda-feira, 18 de julho de 2016

Ankunft





    "Na amizade, muitas vezes, a distância é o lugar mais próximo e de maior proximidade, isto é, onde a presença do outro é tão inteira que já não pode ser medida. Sendo um lugar cheio de saudade, esse também é um lugar feliz, porque aí sem cessar se regressa e avista.
     É como o movimento de quem caminha num espaço alto e estreito: é preciso separar os braços e desunir as mãos, para que possa alcançar-se o equilíbrio."

Daniel Faria, O Livro do Joaquim, Quasi Edições: V. Nova de Famalicão, 2007, p. 76-7

sexta-feira, 15 de julho de 2016

Vorabend 14





"Foi nesse sonho que lhe perguntei pela primeira vez:«Quem é você?», e ela me disse: «Não me lembro.» E eu disse-lhe: «Mas julgo que já nos vimos antes.» E ela disse, indiferente: «Julgo que sonhei consigo uma vez, neste mesmo quarto.» E eu disse-lhe: «É isso, começo agora a lembrar-me.» E ela disse: «É curioso. É verdade que já nos encontrámos noutros sonhos.»"


Gabriel García Márquez, Olhos de Cão Azul, in "Contos Completos 1947-1992". Alfragide: D. Quixote, 2014:411

Vorabend 13


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   " - Estamos aqui para derrotar a natureza - começou ele, contra todas as suas convicções. - Já não seremos mais os deserdados da pátria, os órfãos de Deus, da sede e do mau tempo, os exilados na nossa própria terra. Seremos outros, senhoras e senhores, seremos grandes e felizes."

Gabriel García Márquez, Morte Constante para além do Amor, in "Contos Completos 1947-1992". Alfragide: D. Quixote, 2014:211

sábado, 9 de julho de 2016

Illusion





" Não dizia nada, mas era isso, cheirava a isso, tinha a cor disso. Uma palavra feita de flores. Por algum motivo, aquela palavra escrita botanicamente, digamos assim, tinha uma estranha sacralidade, dava-me a sensação de que não precisaria nunca mais de uma outra palavra além daquela. E, quando penso nisso, talvez seja assim, é a estrada que vai de uma pessoa a outra, é a palavra que diz que não sabemos tudo, que erramos. Aquela palavra composta de flores pareceu-me a pedra angular da Humanidade."

Afonso Cruz, Flores, Lisboa: Companhia das Letras. 2015, p. 194-5

Im Gespräch mit dir





   "- O gato quer voar, mas é como os homens que, para entender as coisas, matam-nas, abrem-nas. Querem voar e para isso engolem as coisas. Andamos todos errados, somos como os gatos, a comer pássaros para voar. Em vez de arranjar maneira de ser como eles, de compreender os pássaros. De abrir os braços em vez de abrir a boca. É preciso compreender os outros."

Afonso Cruz, Jesus Cristo bebia cerveja, Lisboa: Santillana Editores, 2012, p.190

sexta-feira, 8 de julho de 2016

Zu früh...






"O que de sublime e doloroso o tempo guarda
precisava disso de maneira que até é difícil
porque se sentia só nos campos
onde os outros triunfam
descia o sombrio, o noturno atalho

assim chegava cedo de mais à beira não do fim
mas do informulável
para quem as nossas pequenas imposturas
são uma perda, um delito, uma culpa"

José Tolentino Mendonça, O noturno atalho, in A noite abre os meus olhos, Lisboa: Assírio & Alvim, 2006, p. 116