domingo, 28 de agosto de 2016

Hoffnung (Für A. M.)








"Um menino caminha e caminhando chega no muro
e ali logo em frente a esperar pela gente o futuro está
E o futuro é uma astronave que tentamos pilotar


Não tem tempo nem piedade nem tem hora de chegar
Sem pedir licença muda nossa vida,
depois convida a rir ou chorar


Nessa estrada não nos cabe conhecer ou ver o que virá
O fim dela ninguém sabe bem ao certo onde vai dar
Vamos todos numa linda passarela
de uma aquarela que um dia enfim
Descolorirá"


Vinicius de Moraes, Toquinho, Guido Morra, Maurízio Frabrízio, in https://youtu.be/njcAOjJayoE

sábado, 27 de agosto de 2016

Enthüllung







"E eis que sinto que em breve nos separaremos. Minha verdade espantada é que eu sempre estive só de ti e não sabia. Agora sei: sou eu. Eu e a minha liberdade que não sei usar. Grande responsabilidade da solidão. Quem não é perdido não conhece a liberdade e não a ama. Quanto a mim assumo a minha solidão. Que às vezes se extasia como diante de fogos de artifício. Sou só e tenho que viver uma certa glória íntima que na solidão pode se tornar dor. E a dor, silêncio. Guardo o seu nome em segredo. Preciso de segredos para viver."

Clarice Lispector, Água Viva, Rio de Janeiro: Francisco Alves Editora, 1990: 77

Das Leben





  "Quando eu ficar sozinha, estarei seguindo o destino de todas as mulheres.
  Sempre me restará amar. Escrever é alguma coisa extremamente forte mas que pode me trair e me abandonar: posso um dia sentir que já escrevi o que é o meu lote neste mundo e que deve aprender também a parar. Em escrever eu não tenho nenhuma garantia.
  Ao passo que amar eu posso até à hora de morrer. Amar não acaba. É como se o mundo estivesse à minha espera. E eu vou ao encontro do que me espera.
  Espero em Deus não viver do passado. Ter sempre o tempo presente e, mesmo ilusório, ter algo no futuro."

Clarice Lispector, "As três experiências", in A Descoberta do Mundo - Crónicas, Lisboa: Relógio d' Água, 2013, p. 137

quinta-feira, 25 de agosto de 2016

Unverstandbar





"Não entendo. Isso é tão vasto que ultrapassa qualquer entender. Entender é sempre limitado. Mas não entender pode não ter fronteiras. Sinto que sou muito mais completa quando não entendo. Não entender, do modo como falo, é um dom. Não entender, mas não como um simples de espírito. O bom é ser inteligente e não entender. É uma bênção estranha, como ter loucura sem ser doida. É um desinteresse manso, uma doçura de burrice. Só que de vez em quando vem a inquietação: quero entender um pouco. Não demais: mas pelo menos entender que não entendo."

Clarice Lispector, "Não entender", in A Descoberta do Mundo - Crónicas, Lisboa: Relógio d' Água, 2013, p. 242

Schrei




  "Silêncio.
   Se um dia Deus vier à terra haverá silêncio grande.
   O silêncio é tal que nem o pensamento pensa.
  O final foi bastante grandiloquente para a vossa necessidade? Morrendo ela virou ar. Ar enérgico? Não sei. Morreu em um instante. O instante é aquele átimo de tempo em que o pneu do carro correndo em alta velocidade toca no chão e depois não toca mais e depois toca de novo. Etc., etc., etc. No fundo ela não passara de uma caixinha de música meio desafinada.
   Eu vos pergunto:
   - Qual é o peso da luz?"


Clarice Lispector, A Hora da Estrela, Lisboa: Relógio D' Água, 2002, p. 93

terça-feira, 16 de agosto de 2016

Seltsame Dinge





   "Não há coisas estranhas debaixo do céu e da terra que escapem à nossa vã filosofia. Coisas estranhas, e sobre as quais temos de divagar a fim de inventar uma geometria além do limite das figuras.
   No seu sentido fisiológico, o amor é uma carência que não oferece dificuldade saciar, quanto mais essa carência for forte e partindo de uma natureza sem complexidades de maior. Mas as pessoas tendem para a complexidade, assim como os sistemas económicos. A paixão é como uma inflação económica: invade o campo social tanto mais rapidamente quanto mais ele parece estar imunizado pela abundância. Há, de facto, um agente estranho que actua no sentido de produzir a catástrofe psíquica quando um traço intercultural se tornou um meio de castigo; e sabemos que o estado de depressão, psíquico ou económico, corresponde a um estado de temor. Sexo ou dinheiro têm o mesmo significado - mais fuga de entrega do que, na realidade, uma dádiva. Por isso, a penúria, mãe de Eros, renasce sempre dos seus farrapos."

Agustina Bessa-Luís. Adivinhas de Pedro e Inês. Lisboa: Guimarães Editores, 2006, p.  179

sábado, 13 de agosto de 2016

Treue





"De tudo, ao meu amor serei atento
Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto
Que mesmo em face do maior encanto
Dele se encante mais meu pensamento.

Quero vivê-lo em cada vão momento
E em seu louvor hei de espalhar meu canto
E rir meu riso e derramar meu pranto
O seu pesar ou seu contentamento.

E assim, quando mais tarde me procure
Quem sabe a morte, angústia de quem vive
Quem sabe a solidão, fim de quem ame

Eu possa dizer do amor (que tive):
Que não seja imortal, posto que é chama
Mas que seja infinito enquanto dure."

Vinicius de Moraes, Antologia Poética, Lisboa: Publicações D. Quixote, 2001, pp.  136-7

Wiedervereinigung







"Mas os que se apaixonam sempre estiveram apaixonados. Há um vestígio de recordação de coisas vividas no coração humano e que nem sequer precisam de corresponder a factos reais. São às vezes um discurso incoerente mas em que entra a seleção das ideias na direção de um núcleo original que a todos nos atrai. A origem das coisas e da vida é o princípio fascinante da nossa inclinação; o amor não significa mais do que um brusco conhecimento da identidade original, o mesmo que nos faz ser difusos no comportamento social, ou religiosos, idealistas e poetas."


Agustina Bessa-Luís. Adivinhas de Pedro e Inês. Lisboa: Guimarães Editores, 2006, p.  17

sexta-feira, 12 de agosto de 2016

12/08/1986 (30 Jahre)





"Um grande amor nunca é espontâneo. Não nasce da contemplação de uns verdes olhos nem da graça erótica das mãos protegendo o regaço. Ele é preparado de longa data, atravessa desertos de irreparável discórdia, move-se ao impulso das esperanças vãs das casas rivais, de inimigos que se desconhecem para poderem assegurar o prazer da porfia."

Agustina Bessa-Luís. Adivinhas de Pedro e Inês. Lisboa: Guimarães Editores, 2006, p. 129

segunda-feira, 8 de agosto de 2016

Abwarten







"Talvez eu espere simplesmente um amigo que de longe venha
capaz de perseguir uma criança pelas ruas à infância reservadas
alheio e silencioso e tão distante como alguma ideia"

Ruy Belo, Todos os Poemas, Lisboa: Assírio & Alvim, 2000, p. 107

Die Fäden der Zeit





"Este relógio ouço noite e dia
No seu repique dobre de finado.
Finado é o tempo, mal soado..."


                                                    Daniel Jonas, Lisboa: Assírio & Alvim, 2014, p.32

terça-feira, 2 de agosto de 2016

Abfahren




"Sei que agora é tarde, e temo abreviar com a vida, nos rasos do mundo. Mas, então, ao menos, que, no artigo da morte, peguem em mim, e me depositem também numa canoinha de nada, nessa água que não pára, de longas beiras: e, eu, rio abaixo, rio a fora, rio a dentro - o rio."

João Guimarães Rosa, A terceira margem do rio, in "Primeiras Estórias". Rio de Janeiro: Editora Mova Fronteira, 1985:37