quarta-feira, 31 de dezembro de 2014
Geschlossene Fenster
"Não voltei a encontrá-los - esses tão depressa perdidos....
esses olhos poéticos, esse pálido
rosto.... no anoitecer da rua....
Não os encontrei mais - aos adquiridos inteiramente por acaso,
que tão facilmente deixei;
e que depois com ansiedade queria.
esses olhos poéticos, esse pálido rosto,
aqueles lábios não os encontrei mais."
Konstandinos Kavafis, Poemas e Prosa. Lisboa: Relógio d'Água, 1994, p. 71
segunda-feira, 29 de dezembro de 2014
Ich hätte dir noch soviel zu sagen...
"Subitamente, o seu rosto, sempre tão imperturbável, ganhou traços de tão estranha tensão que os seus olhos cinza-mar parecia estarem a ser sobrevoados por sombras de nuvem: «Que pena! Tinha tanta coisa para falar consigo!» E a partir deste momento certa agitação e inquietação mostraram que estava a pensar numa outra coisa qualquer ao mesmo tempo que dizia aquelas palavras. Algo que a absorvia e distraía irresistivelmente. Esta distracção parecia enfim perturbá-la deveras, pois após um silêncio repentinamente instalado, deu-me inesperadamente a mão: «Vejo não conseguir dizer-lhe com clareza aquilo que de facto gostaria de lhe dizer. Prefiro fazê-lo por escrito.»"
Stefan Zweig, Vinte e quatro horas na vida de uma mulher, Lisboa: A esfera dos livros, 2008, p. 22-3
Meine Augen
"Os meus olhos são uns olhos,
e é com esses olhos uns
que eu vejo no mundo escolhos,
onde outros, com outros olhos,
não vêem escolhos nenhuns.
Quem diz escolhos, diz flores!
De tudo o mesmo se diz!
Onde uns vêem luto e dores,
uns outros descobrem cores
do mais formoso matiz.
Pelas ruas e estradas
onde passa tanta gente,
uns vêem pedras pisadas,
mas outros gnomos e fadas
num halo resplandecente!!
Inútil seguir vizinhos,
querer ser depois ou ser antes.
Cada um é seus caminhos!
Onde Sancho vê moinhos,
D. Quixote vê gigantes.
Vê moinhos? São moinhos!
Vê gigantes? São gigantes."
António Gedeão, Obra Completa, Lisboa: Relógio D'Água, 2004, p. 92-3
domingo, 28 de dezembro de 2014
Ich danke dir dafür!
"E então pensei comigo: abrir uma vez o coração e dizer da boca para fora o que nos vai cá dentro, talvez desfaça o pesado anátema e o eterno modo de olhar rigidamente o passado; então amanhã talvez possa ir até lá e entrar na mesma sala, na qual dei de caras com a minha sina e perder o ódio contra ele e contra mim. A pedra foi então deslocada do meu coração, ficando assente com todo o seu peso sobre o meu passado, impedindo-o de ressuscitar uma vez mais. Fez-me bem poder contar-lhe tudo isto; agora sinto-me mais aliviada, sinto-me quase feliz... Estou-lhe grata por isso."
Stefan Zweig, Vinte e quatro horas na vida de uma mulher, Lisboa: A esfera dos livros, 2008, p. 97
sábado, 27 de dezembro de 2014
Rückruf 3
"Levam-me estes sonhos por estranhas landas,
charnecas, desertos, planaltos de neve
muito desolados.
Pessoas que adoro mostram-me outros rostos
que eu desejaria que nunca tivessem
nem mesmo sonhados.
E fico tão triste nestes longos sonhos
e não ouso... e assisto a esta decadência
por todos os lados.
Venho destes sonhos como de outras eras.
Neles embranquecem meus cabelos, ficam
meus lábios parados.
E mais tarde encontro meus sonhos na vida,
somente esses sonhos, somente esses sonhos
todos realizados."
Cecília Meireles, Antologia Poética, Lisboa: Relógio d'Água, 2002, p. 254
Rückruf 2
"A Fotografia não diz (forçosamente) aquilo que já não é, mas apenas e de certeza aquilo que foi. Esta subtileza é decisiva. Diante de uma foto, a consciência não segue necessariamente a via nostálgica da recordação (quantas fotografias estão fora do tempo individual), mas, para toda a fotografia existente no mundo, a via da certeza: a essência da Fotografia é ratificar aquilo que representa."
Roland Barthes, A Câmara Clara (Nota sobre a fotografia). Lisboa: Edições 70, 2008, p. 96
Rückruf 1
"A Fotografia não rememora o passado (não há nada de proustiano numa foto). O efeito que ela produz em mim não é o de restituir aquilo que é abolido (pelo tempo, pela distância), mas o de confirmar que aquilo que vejo existiu realmente. Trata-se, portanto, de um efeito verdadeiramente escandaloso. A Fotografia espanta-me sempre, com um espanto que perdura e se renova inesgotavelmente."
Roland Barthes, A Câmara Clara (Nota sobre a fotografia). Lisboa: Edições 70, 2008, p. 92-3
sexta-feira, 26 de dezembro de 2014
Versprechung
"E o que me dá mais raiva é que eu havia feito tantos planos!
Mas a realidade não pode ser mesmo nem parecida com os sonhos. O melhor é não sonhar coisas que possam desiludir depois.
De agora em diante só sonharei coisas absurdas."
Vera Brant, A Ciclotímica, Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1984, p. 50
quinta-feira, 25 de dezembro de 2014
Wer?
"Que falta me faz alguém que me entenda, que me saiba, que possa ficar ao meu lado quieto, calado, entendendo tudo, sentindo igual. Que não diga palavras tolas sobre as estrelas, que não diga nada, mas que saiba dizer coisas belas, se quiser. Ah! Que afogamento, que desamparo. Que mundo grande tão sem gente. No entanto sei que existem pessoas que me entenderiam. Que me entenderiam até no silêncio. Mas... onde?"
Vera Brant, A Ciclotímica, Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1984, p. 86
quarta-feira, 24 de dezembro de 2014
Versicht
"É verdade que estou muito triste
Na terra (já me indicaram a estrada
Com luz pública). Estou sentado nos degraus
Como alguém que parou de subir"
Daniel Faria, Poesia, Lisboa: Assírio & Alvim, 2012, p. 331
terça-feira, 23 de dezembro de 2014
Licht
"Quero o incerto e perco-me.
O medo arrasta-me para trás do sol
Na sombra do tempo que flui na minha memória.
Apartada pela dor e embalada pelo canto
Perco os meus sentidos lentamente
Num adormecer fácil.
As imagens tornam-se ténues e distantes
O desejo de amar é o que fica entre dois sóis:
O que foi e o que há de vir."
Teresa Klut, "Quero o incerto e perco-me" in Novíssimos. Lisboa: Editora Ausência, 2004, p. 160
segunda-feira, 22 de dezembro de 2014
Nie wieder...
"Para te amar ensaiei os meus lábios...
Deixei de pronunciar palavras duras.
Para te amar ensaiei os meus lábios!
Para tocar-te ensaiei os meus dedos...
Banhei-os na água límpida das fontes.
Para tocar-te ensaiei os meus dedos!
Para te ouvir ensaiei meus ouvidos!
Pus-me a escutar as vozes do
silêncio...
Para te ouvir ensaiei meus ouvidos!
E a vida foi passando, foi passando...
E, à força de esperar a tua vinda,
De cada braço fiz mudo cipreste.
A vida foi passando, foi passando
E nunca mais vieste!"
Ablehnung
"Vem por aqui" - dizem-me alguns
com os olhos doces
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui!"
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...
A minha glória é esta:
Criar desumanidade!
Não acompanhar ninguém.
- Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre à minha mãe
Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...
Se ao que busco saber nenhum de vós responde
Por que me repetis: "vem por aqui!"?
Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...
Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.
Como, pois sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...
Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátria, tendes tectos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios...
Eu tenho a minha Loucura !
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...
Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém.
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.
Ah, que ninguém me dê piedosas intenções!
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou.
É uma onda que se alevantou.
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou
- Sei que não vou por aí!
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui!"
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...
A minha glória é esta:
Criar desumanidade!
Não acompanhar ninguém.
- Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre à minha mãe
Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...
Se ao que busco saber nenhum de vós responde
Por que me repetis: "vem por aqui!"?
Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...
Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.
Como, pois sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...
Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátria, tendes tectos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios...
Eu tenho a minha Loucura !
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...
Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém.
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.
Ah, que ninguém me dê piedosas intenções!
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou.
É uma onda que se alevantou.
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou
- Sei que não vou por aí!
José Régio, Não vou por aí! Antologia Poética, V. N. Famalicão: Quasi Edições, 2000, p. 15
domingo, 21 de dezembro de 2014
Blauer Tag
"Viverei só por prazer, contra a corrente, guardando a memória, o que os outros deitam fora, os desperdícios dos dias."
Teolinda Gersão, Os guarda-chuvas cintilantes. Diário. Cadernos I, Lisboa: Sextante Editora, 5ª edição, 2014, p. 87
quinta-feira, 18 de dezembro de 2014
Sind wir nicht Freunde?
"Talvez a noite me encontre um dia. Sentar-me-ei com ela, a conversar."
Nuno Júdice, "Conversa Nocturna", in O fruto da gramática, Lisboa: D. Quixote, 2014, p.55
quarta-feira, 17 de dezembro de 2014
Stille
"Esta manhã que entra pela janela,
com o frio que sobrou da noite e o cinzento
que vai ficar para o dia, é fabricada com pedaços de tempo, restos
de cor, estilhaços de memória,
que vou colando na superfície branca
da alma.
Por vezes, um pássaro esquecido
do verão entra pela sala vazia, agita
o espaço abstracto com o seu voo
inquieto, acordando a música que
um tecto de nuvens sufoca - e
leva consigo a perfeição do instante
que as suas asas inventam.
Comparo o pássaro e a manhã,
sabendo que a tarde me virá colorir
com a sua túnica
de sombra; e colo aos ombros
a luz que essa imagem me abre,
tão breve como a rosa
matinal que o outono
colhe no caule
do amor."
Nuno Júdice, "Rosa de outono", in O fruto da gramática, Lisboa: D. Quixote, 2014, p. 43
terça-feira, 16 de dezembro de 2014
Gedanke
"porque as imagens não me deixam espaço para inventar nada, impedir-me-ão de pensar, de sentir, uma anestesia, uma hipnose, sento-me no sofá e o mundo desaparece (...)
quero um espaço onde tudo desapareça, como um sono, tapar a cabeça com imagens, como se fosse com areia, - calem-se, gritarei irado às crianças, porque ninguém tem permissão de falar, a não ser as imagens, que não poderão ser interrompidas"
Teolinda Gersão, Os guarda-chuvas cintilantes. Diário. Cadernos I, Lisboa: Sextante Editora, 5ª edição, 2014, p. 61
segunda-feira, 8 de dezembro de 2014
Suche
"(Uma palavra que se procura o dia todo, sem achar, e de noite se continua procurando, por dentro dos sonhos, e não se encontra nunca, é uma palavra branda, talvez, uma palavra branca, começa por a porque a é o princípio, mas não acaba, é uma palavra instável, ondulante, que muda com o vento e se transforma, é o mar, não é o mar, é o vento, o céu, é o campo, a praia, a areia, é o corpo, é a nuvem, é o mar, sempre o mar, não é o mar, adivinha onde começa e onde acaba, tem princípio porque tudo tem princípio, ou não tem talvez fim e não começa.)
(...) é uma palavra transparente, formou-se lentamente, através dos dias, acumulou-se em mim, enquanto eu atravessava as coisas, em qualquer momento virá, densa e funda e também leve, subindo, porque eu a sei, eu a sei, juro cerrando os dedos de concentração, só a sua forma me escapa, o seu percurso, (...)
(De olhos vendados, tacteando, procuro a palavra estendendo as mãos por entre as folhas, debaixo da areia, nos intervalos entre as pedras - e de repente sei que não a vou encontrar nunca.)"
Teolinda Gersão, Os guarda-chuvas cintilantes. Diário. Cadernos I, Lisboa: Sextante Editora, 5ª edição, 2014, pp. 58-9
sexta-feira, 5 de dezembro de 2014
Bilder...
"Acreditei numa distância breve entre o conhecimento
e a aparição de uma imensa luz transversal ao céu
e à vida; e reclamei a descoberta de imagens, de
um fulgor de frases condensadas no arco substantivo
do verso, da palavra definitiva do ocaso. A cabeça
caía-me das mãos; e um cansaço de pensamento
atravessava o meu espírito como um barco
pesado de intuições e de remorsos, de um lastro
de memórias de que não me conseguia
libertar. Esqueci-me do que descobrira. Andei
pela cidade olhando para todos os lados, em busca
do rosto cujos traços perdera como se, em cada rosto
que se cruzava comigo, eu pudesse reencontrar
o desenho da face, a cor imprecisa dos olhos
na passagem da tarde para a noite, o sorriso
familiar no canto dos lábios. E se
eu procurasse dentro de mim?, pensei, se
algures num canto de tempo há muito vivido
a sua voz se voltasse a ouvir murmurando,
ao meu ouvido, qual fora o seu destino? Mas
o tempo chegava ao fim, e rasguei a folha do álbum
onde guardara a sua imagem."
Nuno Júdice, "Na página de um álbum", in O fruto da gramática, Lisboa: D. Quixote, 2014, p. 16
terça-feira, 25 de novembro de 2014
Verlassenheit
"Aqueles passos que ficaram impressos na terra do jardim
no inverno, quando vinhas ao meu encontro e eu
te ia buscar, há muito se apagaram. Aos invernos
sucederam primaveras, e outros invernos voltaram,
e sempre que atravessava o jardim e queria ver
um sinal da tua existência, só a relva recentemente
plantada a tapar os pedaços de onde o temporal
a tinha arrancado, e que nós pisávamos na pressa
de nos ver, mostrava que algo ali teria ficado
do instante em que os meus e os teus passos
se juntavam, e por instantes nos demorávamos,
antes de voltar para o caminho de pedra que nos
levaria para o café. E por trás dos grandes vidros
húmidos da chuva e sujos do tabaco, o mundo
parecia esfumar-se, como se existíssemos nós
apenas, naquele sítio longe de tudo o que nos
distraía de nós. Heje, porém, quando me tento
lembrar do teu rosto, das tuas mãos, do modo
como falavas, ou do teu riso tantas vezes
melancólico, sombras e sombras se atravessam
entre mim e ti, sem que eu deixe de te olhar.
Nuno Júdice, "Elegia de Inverno", in O fruto da gramática, Lisboa: D. Quixote, 2014, p. 20
quarta-feira, 19 de novembro de 2014
Anzeige
"Não precisa ser homem, basta ser humano, basta ter sentimento, basta ter coração. Precisa saber falar e calar, sobretudo saber ouvir. Tem que gostar de poesia, de madrugada, de pássaro, de sol, da lua, do canto dos ventos e das canções da brisa. Deve ter amor, um grande amor por alguém, ou então sentir falta de não ter esse amor. Deve amar o próximo e respeitar a dor que os passantes levam consigo. Deve guardar segredo sem se sacrificar.
Não é preciso que seja de primeira mão, nem é imprescindível que seja de segunda mão. Pode já ter sido enganado (...). Não é preciso que seja puro, nem que seja de todo impuro, mas não deve ser vulgar. Deve ter um ideal e medo de perdê-lo e, no caso de assim não ser, deve sentir o grande vácuo que isso deixa. (...) Deve sentir pena das pessoas tristes e compreender o imenso vazio dos solitários.
(...) Deve gostar de ruas desertas, de poças de água e de caminhos molhados, de beira de estrada, de mato depois da chuva, de se deitar no capim."
Vinícius de Moraes (?), in http://www.blassoc.com.br/bettyvidigaltextovm.htm
sábado, 15 de novembro de 2014
Dort, wo du mich erwartest...
"Estás só. Ninguém o sabe. Cala e finge.
Mas finge sem fingimento.
Nada 'speres que em ti já não exista,
Cada um consigo é triste.
Tens sol se há sol, ramos se ramos buscas,
Sorte se a sorte é dada."
Odes de Ricardo Reis . Fernando Pessoa. Mem Martins: Livros de Bolso Europa-América, s. d., p. 141.
terça-feira, 4 de novembro de 2014
Jetzt ist es zu spät...
"Talvez se eu tivesse dito que
te amava, ao despedir-me de ti, a vida
tivesse sido outra, como se o curso de um rio
se pudesse alterar quando toda a água
passou pelas margens que agora ficaram
secas. O amor, podia dizer-te, seria como
o aluvião que arrasta tudo à sua
passagem, devastando para sempre
a paisagem. Mas limito-me
a ver que nada mudou, e verifico
que são as mesmas as plantas
que ali estavam quando
atravessei contigo a ponte de madeira,
embora sejam outras as folhas e as flores,
como outro será o teu rosto, tantos
anos passados sem te ver. E
a imagem que de súbito me surgiu,
na velha fotografia a preto e branco
em que és apenas uma sombra, fez com
que eu tivesse dito, na solidão
desta sala, que te amava - como se
pudesse sair de dentro do álbum, e
a vida que nunca vivemos pudesse
recomeçar, neste instante em que
deitei para o lixo a fotografia
de onde não quiseste sair."
Nuno Júdice, "Remorso Branco", in O fruto da gramática, Lisboa: D. Quixote, 2014, p. 32
quarta-feira, 29 de outubro de 2014
Meine Seele
"Minha alma tem o peso da luz. Tem o peso da música. Tem o peso da palavra nunca dita, prestes quem sabe a ser dita. Tem o peso de uma lembrança. Tem o peso de uma saudade. Tem o peso de um olhar. Pesa como pesa uma ausência. E a lágrima que não se chorou. Tem o imaterial peso da solidão no meio dos outros."
N. B. Gotlib. "Clarice: Uma vida que se conta". São Paulo: Ática, 1995
sexta-feira, 24 de outubro de 2014
Müdigkeit
"Há sem dúvida quem ame o infinito,
Há sem dúvida quem deseje o impossível,
Há sem dúvida quem não queira nada —
Três tipos de idealistas, e eu nenhum deles:
Porque eu amo infinitamente o finito,
Porque eu desejo impossivelmente o possível,
Porque quero tudo, ou um pouco mais, se puder ser,
Ou até se não puder ser...
E o resultado?
Para eles a vida vivida ou sonhada,
Para eles o sonho sonhado ou vivido,
Para eles a média entre tudo e nada, isto é, isto...
Para mim só um grande, um profundo,
E, ah com que felicidade infecundo, cansaço,
Um supremíssimo cansaço,
Íssimo, íssimo, íssimo,
Cansaço..."
Poesias de Álvaro de Campos. Fernando Pessoa. Lisboa: Ática, 1944 (imp. 1993), p.
64.
terça-feira, 21 de outubro de 2014
domingo, 19 de outubro de 2014
Deine Abschiedsworte
"Nada me dês nem peças.
E não meças
O que podias dar e receber.
Fecha a própria riqueza do teu ser.
Um de nós era a mais
À lírica janela...
Olharam-se os zagais,
Mas não houve novela.
A vida assim o quis,
A vida sem amor.
Não regues a raiz
Do que não teve flor."
Miguel Torga, "Bilhete", in Diário (1943)
sábado, 18 de outubro de 2014
Und sein Name war...
"Também eu conheci Artur Paz Semedo. Não trabalhava nos serviços de faturação de armamento ligeiro e munições da Belona S. A., e não teve uma ex-mulher pacifista. Não vivia em Itália. Provavelmente nunca pegou numa pistola, imagine-se se alguma vez terá pensado em dar um tiro. Mas também eu conheci Artur Paz Semedo e o seu nome era..."
Roberto Saviano,Também eu conheci Artur Paz Semedo, in Alabardas, José Saramago, Porto: Porto Editora. 2014, p.109
segunda-feira, 13 de outubro de 2014
Ich habs geschafft...
"O que é preciso é ser-se natural e calmo
Na felicidade ou na infelicidade,
Sentir como quem olha,
Pensar como quem anda,
E quando se vai morrer, lembrar-se de que o dia morre,
E que o poente é belo e é bela a noite que fica...
Assim é e assim seja ... "
Alberto Caeiro, "O Guardador de Rebanhos - Poema XXI", in Poesia dos Ouros Eus. Lisboa: Assírio & Alvim. 2010
terça-feira, 7 de outubro de 2014
Augenblick
"Tudo renegarei menos o afecto,
e trago um ceptro e uma coroa,
o primeiro de ferro, a segunda de urze,
para ser o rei efémero
desse amor único e breve
que se dilui em partidas
e se fragmenta em perguntas
iguais às das amantes
que a claridade atordoa e converte.
Deixa-me reinar em ti
o tempo apenas de um relâmpago
a incendiar a erva seca dos cumes.
E se tiver que montar guarda,
que seja em redor do teu sono,
num êxtase de lábios sobre a relva,
num delírio de beijos sobre o ventre,
num assombro de dedos sob a roupa.
Eu estava morto e não sabia, sabes,
que há um tempo dentro deste tempo
para renascermos com os corais
e sermos eternos na sofreguidão de um instante."
José Jorge Letria, in "Variantes do Oiro" ( http://www.citador.pt/)
o primeiro de ferro, a segunda de urze,
para ser o rei efémero
desse amor único e breve
que se dilui em partidas
e se fragmenta em perguntas
iguais às das amantes
que a claridade atordoa e converte.
Deixa-me reinar em ti
o tempo apenas de um relâmpago
a incendiar a erva seca dos cumes.
E se tiver que montar guarda,
que seja em redor do teu sono,
num êxtase de lábios sobre a relva,
num delírio de beijos sobre o ventre,
num assombro de dedos sob a roupa.
Eu estava morto e não sabia, sabes,
que há um tempo dentro deste tempo
para renascermos com os corais
e sermos eternos na sofreguidão de um instante."
José Jorge Letria, in "Variantes do Oiro" (
sexta-feira, 3 de outubro de 2014
Verstummt und traurig
"Dei-me inteiro. Os outros
fazem o mundo (ou crêem
que fazem). Eu sento-me
na cancela, sem nada
de meu e tenho um sorriso
triste e uma gota
de ternura branda no olhar.
Dei-me inteiro. Sobram-me
coração, vísceras e um corpo.
Com isso vou vivendo."
Rui Knopfli, Memória Consentida: 20 anos de poesia 1959-1979. INCM: 1982
terça-feira, 30 de setembro de 2014
Zu meinen Freunde
"Amo devagar os amigos que são tristes com cinco dedos de cada lado.
Os amigos que enlouquecem e estão sentados, fechando os olhos,
com os livros atrás a arder para toda a eternidade.
Não os chamo, e eles voltam-se profundamente
dentro do fogo.
- Temos um talento doloroso e obscuro.
Construímos um lugar de silêncio.
De Paixão."
Herberto Helder, Poesia Toda, Lisboa: Assírio & Alvim, 1996, p. 113.
segunda-feira, 29 de setembro de 2014
Müdigkeit und Träne
"Estou cansado, é claro,
Porque, a certa altura, a gente tem de estar cansado.
De que estou cansado, não sei:
De nada me serviria sabê-lo,
Pois o cansaço fica na mesma.
A ferida dói como dói
E não em função da causa que a produziu."
Obra Poética de Fernando Pessoa, Poemas de Álvaro de Campos, Lisboa: Publicações Europa-América, s. d., pp. 122-3
"Nunca sei se quero descansar porque estou realmente cansada, ou se quero descansar para desistir."
Clarice Lispector
sexta-feira, 26 de setembro de 2014
Immer wieder
"Porque o melhor, enfim,
É não ouvir nem ver...
Passarem sobre mim
E nada me doer!"
Camilo Pessanha, Clepsidra, Lisboa: Ulisseia, s.d., p. 87
quarta-feira, 17 de setembro de 2014
Gebet
Nossa Senhora do Silêncio
"Às vezes quando, abatido e humilde, a própria força de sonhar se me desfolha e se me seca, e o meu único sonho só pode ser o pensar nos meus sonhos, folhejo-os então, como a um livro que se folheia e se torna a folhear sem ter mais que palavras inevitáveis. É então que me interrogo sobre quem tu és, figura que atravessas todas as minhas visões demoradas de paisagens outras, e de interiores antigos e de cerimoniais faustosos de silêncio. Em todos os meus sonhos ou apareces, sonho, ou, realidade falsa, me acompanhas. Visito contigo regiões que são talvez sonhos teus, terras que são talvez corpos teus de ausência e desumanidade, o teu corpo essencial descontornado para planície calma e monte de perfil frio em jardim de palácio oculto. Talvez eu não tenha outro sonho senão tu, talvez seja nos teus olhos, encostando a minha face à tua, que eu lerei essas paisagens impossíveis, esses tédios falsos, esses sentimentos que habitam a sombra dos meus cansaços e as grutas dos meus desassossegos. Quem sabe se as paisagens dos meus sonhos não são o meu modo de não te sonhar? Eu não sei quem tu és, mas sei ao certo o que sou? Sei eu o que é sonhar para que saiba o que vale o chamar-te o meu sonho? Sei eu se não és uma parte, quem sabe se a parte essencial e real, de mim? E sei eu se não sou eu o sonho e tu a realidade, eu um sonho teu e não tu um Sonho que eu sonhe?
Que espécie de vida tens? Que modo de ver é o modo como te vejo? Teu perfil? Nunca é o mesmo, mas não muda nunca. E eu digo isto porque o sei, ainda que não saiba que o sei. Teu corpo? Nu é o mesmo que vestido, sentado está na mesma atitude do que quando deitado ou de pé. Que significa isto, que não significa nada?"
Fernando Pessoa, O Livro do Desassossego, Composto por Bernardo Soares, ajudante de guarda-livros na cidade de Lisboa, Linda-a.Velha: Biblioteca Visão, 2000, pp. 329-30
sábado, 13 de setembro de 2014
Zu meinem Geburtstag!
"Mas hoje paro de cantar. O poente
De folhas secas veste o horizonte.
E como outrora escuto, mansamente,
A voz da mesma fonte."
Duarte Solano, Coroa de rosas, Penafiel: Associação Amigos da Biblioteca Municipal de Penafiel, 2013, p. 91
terça-feira, 9 de setembro de 2014
Zu deinem Geburtstag!
"O homem que assim se aproxima, vago entre as cordas de chuva, é o meu avô. Vem cansado, o velho. Arrasta consigo 70 ano de vida difícil, de privações, de ignorância. E no entanto é um homem sábio, calado, que só abre a boca para dizer o indispensável. Fala tão pouco que todos nos calamos para o ouvir quando no rosto se lhe acende algo como uma luz de aviso.(...) Mas a imagem que não me larga nesta hora de melancolia é a do velho que avança sob a chuva, obstinado, silencioso, como quem cumpre um destino que nada poderá modificar. A não ser a morte. Este velho, que quase toco com a mão, não sabe como irá morrer. Ainda não sabe que poucos dias antes do seu último dia terá o pressentimento de que o fim chegou, e irá, de árvore em árvore do seu quintal, abraçar os troncos, despedir-se deles, das sombras amigas, dos frutos que não voltará a comer. Porque terá chegado a grande sombra, enquanto a memória não o ressuscitar no caminho alagado ou sob o côncavo do céu e a eterna interrogação dos astros. Que palavra dirá então?"
José Saramago, As Pequenas Memórias, Lisboa: Editorial Caminho, 2006, pp. 129-130
segunda-feira, 8 de setembro de 2014
Bis Morgen, Lieber O.!
"Às vezes pergunto-me se certas recordações são realmente minhas, se não serão mais do que lembranças alheias de episódios de que eu tivesse sido actor inconsciente e dos quais só mais tarde vim a ter conhecimento por me terem sido narrados por pessoas que neles houvessem estado presentes, se é que não falariam, também elas, por terem ouvido contar a outras pessoas."
José Saramago, As Pequenas Memórias, Lisboa: Editorial Caminho, 2006, pp. 63-4
domingo, 7 de setembro de 2014
Lass mich dir helfen, bevor es zuspät ist!
"Darei o que posso aos meus amigos: um capítulo no livro, que relembra uma época de provação de amigos. (...)
Amigos verdadeiros são os que nos acodem inopinados com valedora mão nas tormentas desfeitas. Esses vêm de Deus, e cumprem a mensagem divina de dizer ao infeliz que o Criador formando o homem, não estava caprichando no requintar a sua omnipresença em abortos de ferocidade e velhacaria."
Camilo Castelo Branco, Memórias do Cárcere, Lisboa: Parceria A. M. Pereira, 2011: 173
quinta-feira, 4 de setembro de 2014
Eine Stunde oder sechzig Sekunde?
"Não sei como o perceberão as crianças de agora, mas, naquelas épocas remotas, para as infâncias que fomos, o tempo aparecia-nos como feito de uma espécie particular de horas, todas lentas, arrastadas, intermináveis. Tiveram de passar alguns anos para que começássemos a compreender, já sem remédio, que cada uma tinha apenas sessenta minutos, e, mais tarde ainda, teríamos a certeza de que todos estes, sem excepção, acabavam ao fim de sessenta segundos."
José Saramago, As Pequenas Memórias, Lisboa: Editorial Caminho, 2006, p. 65
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