segunda-feira, 31 de dezembro de 2012

Freundschaft 1



"A amizade começa como um acto sem continuidade, um salto. É um momento em que sentimos uma fortesimpatia, um interesse, sentimos uma afinidade em relação a uma pessoa. Se já a conhecíamos há algum tempo, é como se a víssemos de uma maneira diferente, pela primeira vez. Chamaremos «encontro» a essa experiência. O encontro é sempre inesperado, revelador. Com a grande maioria dos nossos conhecimentos nunca daremos este primeiro passo na estrada da amizade. Poderemos estar juntos toda a vida, porém nunca se verifica aquele contacto, aquela centelha por causa da qual somos atraídos por ele e desejamos enconrar-nos de novo, para continuarmos qualquer coisa que começámos. A amizade constitui-se através de uma sucessão de estes «encontros», cada um dos quais continua o precedente. (...) Podemos retomar a conversa interrompida. O que surpreende no encontro é que a conversa já não se detém sobre o que dissemos anteriormente. Cada «encontro» é diferente, abre uma nova estrada, abre-nos novas perspectivas. Se uma amizade é verdadeira, isto repetir-se-á inúmeras vezes.
«A amizade é uma filigrana de encontros.»Ninguém sabe antecipadamente se haverá ou não um encontro. O encontro é sempre imprevisível, inesperado. Como a felicidade, que já não está onde a esperamos como caçadores em guarda. Se procuramos ansiosamente a felicidade, se a queremos, encontramos mais frequentemente a desilusão. Ou o aborrecimento. A felicidade aparece de improviso, quando não pensamos realmente nela, como se nos seguisse e esperasse, para se revelar, que estivéssemos distraídos. O encontro é em si mesmo um momento de felicidade, de grande intensidade vital. É um momento em que compreendemos algo de nós próprios e do mundo. No encontro sentimos que a outra pessoa nos ajuda a caminhar na direcção correcta."
 
Francesco Alberoni, "A Amizade", Venda Nova: Bertrand Editora, 1996, pp. 17-18

domingo, 30 de dezembro de 2012

Fünf Jahre 4

 

"Momentos há em que a toda a nossa volta os objectos se tornam insuportáveis como se nos roubassem o ar, como se neles houvesse uma respiração onde o ar e a luz interviessem simultaneamente. Entre os sabores que tocam no meu espírito procuro então o que de melhor me possa devolver à transparência, não a dos espelhos ou a dos vidros, que a literalidade impregna, mas a abrupta transparência dos sentidos."
 
Luís Miguel Nava, "Tranparência", in Poesia Completa, Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2002, p. 170

sábado, 29 de dezembro de 2012

Fünf Jahre 3


 

"O certo é que eu, nessa tarde longínqua, adquiri a sensibilidade melindrosa a que devo os maiores sofrimentos e alegrias e também (veja-se a outra face da medalha) este impudor que nos leva a apresentar em público a nossa alma conforme Deus a pôs no mundo - nua, completamente nua!"

Teixeira de Pascoaes, O Bailado, Colecção "Obras Completas de Teixeira de Pascoaes", organização de Jacinto do Prado Coelho, volume VIII, Livraria Bertrand: Amadora, 1973, p. 29

sexta-feira, 28 de dezembro de 2012

quinta-feira, 27 de dezembro de 2012

Fünf Jahre 1



"um bom poema
leva anos   
cinco jogando bola,
mais cinco estudando sânscrito,   
seis carregando pedra,
nove namorando a vizinha,   
sete levando porrada,
quatro andando sozinho,  
três mudando de cidade,
dez trocando de assunto,   
uma eternidade, eu e você,
caminhando junto"
 
 
Paulo Leminsky

quarta-feira, 26 de dezembro de 2012

Es ist nun Weihnachten...




"O barulho de existir:
um cão
dentro de mim.

Atravesso
como a um pátio
o barulho de existir."


Carlos Nejar, "Claridade", in Antologia Poética de Carlos Nejar, Editorial Pergaminho, 2003: 92

segunda-feira, 24 de dezembro de 2012

Es ist Weihnachten!



"Nasce mais uma vez,
Menino Deus!
Não faltes, que me faltas
Neste inverno gelado.
Nasce nu e sagrado
No meu poema,
Se não tens um presépio
Mais agasalhado.
Nasce e fica comigo
Secretamente,
Até que eu, infiel, te denuncie
Aos Herodes do mundo.
Até que eu, incapaz
De me calar,
Devasse os versos e destrua a paz
Que agora sinto, só de te sonhar."


Miguel Torga, Natal, in "de natal em busca", Ed. Pássaro de Fogo, 2006, p. 48

sexta-feira, 21 de dezembro de 2012

Zu deinem Geburstag



"Cada prenda de um amigo é uma esperança na tua felicidade; assim é este anel."

Richard Bach, Não há Longe nem Distância, Publicações Europa-América: Mem Martins, 1979

segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

Jetzt ist mir alles klar!




"Na impossibilidade da amizade ter um fim,
 continuar a amar é dizer adeus."

Daniel Faria, O Livro do Joaquim, Quasi Edições: V. Nova de Famalicão, 2007, p. 84

sábado, 15 de dezembro de 2012

Ich bin nun traurig...



"Deixei o jardim encantado da Primavera perpétua  e regressei ao mundo que conhecia. Onde a chuva continuava a cair."

Tom Harper, "O Mosaico de Sombras - Um mistério em Bizâncio", Lisboa: Editorial Bizâncio, 2006, p. 253

domingo, 9 de dezembro de 2012

Bis morgen!




"Sei agora como nasceu a alegria,
como nasce o vento entre barcos de papel,
como nasce a água ou o amor
quando a juventude não é uma lágrima.

É primeiro só um rumor de espuma
à roda do corpo que desperta,
sílaba espessa, beijo acumulado,
amanhecer de pássaros no sangue.

É subitamente um grito,
um grito apertado nos dentes,
galope de cavalos num horizonte
onde o mar é diurno e sem palavras.

Falei de tudo quanto amei.
De coisas que te dou
para que tu as ames comigo:
a juventude, o vento e as areias."


Eugénio de Andrade, As Palavras Interditas. Até Amanhã, Porto: Fundação Eugénio de Andrade, 1990, p. 44

sábado, 8 de dezembro de 2012

Über den Himmel und die Hölle



"Era uma vez um lugar com um pequeno inferno e um pequeno paraíso, e as pessoas andavam de um lado para o outro, e encontravam-nos, a eles, ao inferno e ao paraíso, e tomavam-nos como seus de verdade. As pessoas eram pequenas, mas faziam muito ruído. E diziam: é o meu inferno, é o meu paraíso. E não devemos malquerer às mitologias assim, porque são das pessoas, e neste assunto de pessoas, amá-las é que é bom. E então a gente ama as mitologias delas. À parte isso o lugar era execrável."
 
Herberto Helder, Os Passos em Volta, 9ª ed., Lisboa: Assírio & Alvim, 2006, p. 53

quarta-feira, 5 de dezembro de 2012

Unsagbar




"O que dói
É não poder apagar a tua ausência
e repetir dia após dia os mesmos gestos

O que dói
é o teu nome que ficou como mendigo
Descoberto em cada esquina dos meus versos

O que dói
é tudo e mais aquilo que desteço
Ao tecer para ti novos regressos"

Daniel Faria, "Ítaca", in Poesia, Lisboa: Assírio & Alvim, 2012, p. 379

domingo, 2 de dezembro de 2012

Es friert...



"No coração da mina mais secreta,
No interior do fruto mais distante,
Na vibração da nota mais discreta,
No búzio mais convolto e ressoante,

Na camada mais densa da pintura,
Na veia que no corpo mais nos sonde,
Na palavra que diga mais brandura,
Na raiz que mais desce, mais esconde,

No silêncio mais fundo desta pausa,
Em que a vida se fez perenidade,
Procuro a tua mão, decifro a causa
De querer e não crer, final, intimidade."


José Saramago, in Os Poemas Possíveis


sábado, 1 de dezembro de 2012

Lass die Blume stehen!


 

"Deixa ficar a flor,
a morte na gaveta,
o tempo no degrau.


Conheces o degrau:
o sétimo degrau
depois do patamar;
o que range ao passares;
o que foi esconderijo
do maço de cigarros
fumado às escondidas...

Deixa ficar a flor.

E nem murmures. Deixa
o tempo no degrau,
a morte na gaveta.
Conheces a gaveta:
a primeira da esquerda,
que se mantém fechada.
Quem atirou a chave
pela janela fora?
Na batalha do ódio,
destruam-se, fechados,
sem tréguas, os retratos!

Deixa ficar a flor.

A flor? Não a conheces.
Bem sei. Nem eu. Ninguém.

Deixa ficar a flor.

Não digas nada. Ouve.
Não ouves o degrau?

Quem sobe agora a escada?
Como vem devagar!
Tão devagar que sobe...

Não digas nada. Ouve:
é com certeza alguém,
alguém que traz a chave.

Deixa ficar a flor."

David Mourão-Ferreira, "Obra Poética 1948-1988", Lisboa: Editorial Presença, 1996, pp. 13-14

quinta-feira, 29 de novembro de 2012

Eine Frau...



"A mulher muitas vezes avança

A mulher muitas vezes caminha pela borda
Do vestido. Pudesse tocar
A fímbria ou a franja de toda a casa
Ela a sararia. Ela sairia
Com o cabelo solto

Muitas vezes a mulher prende o cabelo com as mãos
Cose muitas vezes com a lâmpada por dentro - a agulha
A cerzir o brilho. A mulher remenda
A lâmpada apagada. Por dentro
O coração ponteia alguma luz

A vida roda, o vestido rompe-se

A mulher é um barco quando se afunda
A hélice gira - gera como planta
Em redor da luz. A mulher
Anda em redor como corola
Sem pólen

A azenha anda à volta na memória e a água corre-lhe
Dos olhos. Põe o coração para a frente como os fuzilados
Enxuga os olhos como se espalhasse. A mulher
Varre infinitamente mais do que o que vemos ou somos capazes de imaginar

E há imagens na terra
Que nunca lhe lembram o céu"


Daniel Faria, "Do que sangro", in Poesia, Lisboa: Assírio & Alvim, 2012, p. 320-1

quarta-feira, 28 de novembro de 2012

So einfach...



"Instruções: Quando as preocupações apertam, abane a tábua na minha direcção."

 
Herta Müller,  A Terra das Ameixas Verdes, Lisboa, Difel, 2007: 134

domingo, 25 de novembro de 2012

Abfahrt



"Quero um dia para chorar.
Mas a vida vai tão depressa!
- e é preciso deixar contida
a tristeza, para que a vida,
que acaba quando mal começa,
tenha tempo para se acabar.

Não quero amor, não quero amar...
Não quero nenhuma promessa
nem mesmo para ser cumprida.
Não quero a esperança partida,
nem nada de quanto regressa.
Quero um dia para chorar."

Cecília Meireles, O Instante Existe, Cascais: Arte Plural Eds., 2003, p. 32.

quinta-feira, 22 de novembro de 2012

Die Worte




"Lutar com as palavras, progredir
pelo interior desta guerra até chegar
à palavra única da perda, esmagá-la
contra mim, obriga-me a dizer
o seu corpo dizimado. O caos. Os cacos."


Rui Nunes, Grito, Lisboa: Relógio D'Água, 1997, p. 51

terça-feira, 20 de novembro de 2012

Müdigkeit 2


 
 
 
"Viver sempre também cansa!
O sol é sempre o mesmo e o céu azul
ora é azul, nitidamente azul,
ora é cinza, negro, quase verde...
Mas nunca tem a cor inesperada.
O Mundo não se modifica.
As árvores dão flores,
folhas, frutos e pássaros
como máquinas verdes.
As paisagens também não se transformam.
Não cai neve vermelha,
não há flores que voem,
a lua não tem olhos
e ninguém vai pintar olhos à lua.
Tudo é igual, mecânico e exacto.
Ainda por cima os homens são os homens.
Soluçam, bebem, riem e digerem
sem imaginação.
E há bairros miseráveis, sempre os mesmos,
discursos de Mussolini,
guerras, orgulhos em transe,
automóveis de corrida...
E obrigam-me a viver até à Morte!
Pois não era mais humano
morrer por um bocadinho,
de vez em quando,
e recomeçar depois, achando tudo mais novo?"

segunda-feira, 19 de novembro de 2012

Neuer Anfang



"Esse longo caminho percorrido
lado a lado, nos bons e maus momentos,
faz de nós dois um ser unificado
pelos mais fundos, ternos sentimentos."

Carlos Drummond de Andrade,  Poesia Errante, Rio de Janeiro, Editora Record, 2003: 117

sexta-feira, 16 de novembro de 2012

Letzte Sitzung



"Demorei-me muito tempo ao pé de ti.
As portas fechadas por dentro, como se encerrasses
o amor e a lei. Demorei-me demais. Ao fim da tarde,
nesse mesmo dia que já morreu,
olhámo-nos devagar, mas distraídos. Diria até que anoiteceu.

Nunca falámos do amor que chega tarde.
Nem o interpelámos (como se já não pudesse
ter nome). Fingia ter esquecido o teu corpo
nas muralhas. Nas areias.

Vês aqui alguma figura? Ninguém vê.
Repara no ponto preto que alastra na margem do quadro,
nas minhas lágrimas desse tempo.
Relê."


Luis Filipe Castro Mendes, in "Modos de Música"

terça-feira, 13 de novembro de 2012

Beichte 2



"Nesta última tarde em que respiro
A justa luz que nasce das palavras
E no largo horizonte se dissipa
Quantos segredos únicos, precisos,
E que altiva promessa fica ardendo
Na ausência interminável do teu rosto.
Pois não posso dizer sequer que te amei nunca
Senão em cada gesto e pensamento
E dentro destes vagos vãos poemas;
E já todos me ensinam em linguagem simples
Que somos mera fábula, obscuramente
Inventada na rima de um qualquer
Cantor sem voz batendo no teclado;
Desta falta de tempo, sorte, e jeito,
Se faz noutro futuro o nosso encontro."


António Franco Alexandre, Uma fábula, Assírio & Alvim, Editores, in http://poesiaseprosas.no.sapo.pt


quarta-feira, 7 de novembro de 2012

Beichte 1



faço perguntas às minhas próprias dúvidas e lembro-me de um filme antigo quando percebo que não respondem: silêncio e preto e branco. a sombra de brancas paredes e uma cama vazia. nada é sequer definitivo. a situação é esta: tenho medo. cercam-me por todos os lados que não existem para fugir, e espero pelo incêndio, apenas espero. é preciso regar as flores. sou eu que tenho de decidir e tenho medo de adormecer, tenho medo de não ter mais tempo. não tenho o direito de telefonar para te dizer isso. tudo desaparece antes de ser dito. mas ainda há tempo... se morresse perguntavas: porque não me telefonaste? se telefonasse, perguntavas: sabes que horas são? estou ocupado! ou não atendias. e eu ficava aqui. com a noite ainda mais comprida, com a insónia, com o medo, com as tuas palavras a pegarem-se aos pesadelos. eu ficava aqui em silêncio. porque se eu estivesse única e completa, com as raízes e as cicatrizes, com as cartas que escrevi mentalmente e nunca enviei, tu saberias como chegar às antigas palavras que magoam, por isso eu fico aqui em silêncio e começo a anotar as minhas preocupações, tão importantes apenas para mim. os segredos escondem-se por trás das brancas paredes e de uma cama vazia. não há motivo para te importunar a meio da noite. de que poderíamos falar agora? guardo uma ternura simples, quase dolorosa, muitos silêncios, todas a horas do dia e um poema que se dissolve dentro de mim e que, devagar, sem rosto, desaparece. como se adormecesse... agora, esta voz dirige-se ao teu rosto. a situação é esta...
 
 
Leituras de "Gaveta de papéis", de José Luís Peixoto 

terça-feira, 6 de novembro de 2012

Erklärung




"desapego /ê/ s.m. (sXV cf. AGG) 1. qualidade ou estado de pessoa desapegada, que revela desamor por alguém (ou grupo de pessoas); despego {era visível o seu d. pelo padrasto} 2. qualidade ou estado de quem demonstra indiferença, desinteresse, desprendimento pelas coisas ou por certa coisa em particular; despego {d. à vida}{d. pelas coisas materiais◊  ETIM regr. de desapegar; var. despego, com des- + pego, f. afer. de apego; ver peg-  SIN / VAR ver sinoníma de desprendimento e desprezo  ANT amor, apego, interesse; ver tb. antonímia de desprendimento, desprezo    HOM desapego (fl. desapegar)."
 
Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, Ed. Objetiva: Rio de Janeiro, 2001, p. 995
 
 

segunda-feira, 5 de novembro de 2012

Freundschaft



     “O vosso amigo é o vosso desejo cumprido. É o vosso campo que semeais com amor e colheis com gratidão. É a vossa mesa servida e o vosso átrio. Apresentais-vos a ele com a vossa fome e nele procurais a paz. Quando o vosso amigo vos diz o que pensa, não receeis o “não” do vosso espírito, nem retenhais o “sim”. E quando estiver silencioso, não deixe o vosso coração de escutar o seu coração; porque na amizade, todas as ideias, todos os desejos e todas as esperanças nasceram e foram partilhadas sem palavras e com uma alegria inexprimível. Quando vos separardes do vosso amigo, não vos entristeçais, porque aquilo que de melhor amais nele pode tornar-se mais claro na sua ausência; tal como vista da planície, a montanha é mais nítida para quem a escala. E que não haja outro fim na amizade que não seja o aprofundar da alma. Porque o amor que não procura revelar o seu próprio mistério não é amor, mas sim uma rede lançada a um mar sem peixes, apenas conseguindo prender o supérfluo. E que o melhor que haja em vós seja para o vosso amigo. E se ele tiver que conhecer o refluxo da vossa maré, que conheça também o seu fluxo. Pois, para que serve o amigo se o procurais apenas para matar o tempo? Procurai-o sempre para as horas vivas. Ele vem para resolver as vossas necessidades, mas não o vosso vazio. E que na doçura da amizade residam a alegria e a partilha dos prazeres. Porque é no orvalho das coisas pequenas que o coração encontra a sua manhã e se reanima.”
 
 
Kahlil Gibran,  O Profeta, Mem Martins: Livros de Vida Editores, 2003: 58-9

sexta-feira, 2 de novembro de 2012

Reine Linguistik





"Tenho uma arma secreta
ao serviço das nações.
Não tem carga nem espoleta
mas dispara em linha recta
mais longe que os foguetões.

Não é Júpiter, nem Thor,
nem Snark ou outros que tais.
É coisa muito melhor
que todo o vasto teor
dos Cabos Canaverais.

A potência destinada
às rotações da turbina
não vem da nafta queimada,
nem é de água oxigenada
nem de ergóis de furalina.

Erecta, na noite erguida,
em alerta permanente,
espera o sinal da partida.
Podia chamar-se VIDA.
Chama-se AMOR, simplesmente."


António Gedeão, Obra Completa, Lisboa: Relógio D'Água, 2004, p. 177

segunda-feira, 29 de outubro de 2012

Umsonst




"Não te chamo pra te acusar, oh não (...)
Não... é por saudade que te chamo (...)"

Aleksandr Púchkin, "O Cavaleiro de Bronze e outros poemas", Lisboa: Assírio & Alvim, 1999, p. 124-125

domingo, 28 de outubro de 2012

Hoffentlich

 
"Deus sabe o que faz: acho que está certo o estado de graça não nos ser dado frequentemente. Se fosse, talvez passássemos definitivamente para o outro lado da vida, que esse outro lado também era real mas ninguém nos entenderia jamais: perderíamos a linguagem em comum (...)"
 
 
Clarce Lispector, citada em "Clarice Lispector Uma Vida, de Benjamin Moser, Porto: Civilização Editora, 2009, p. 294

sábado, 27 de outubro de 2012

Ich bin müde...




"Ich bin müde..

Mit den Bäumen führte ich Gespräche.

Mit den Schafen litt ich die Dürre.

Mit den Vögeln sang ich in Wäldern.

Ich schaute hinauf zur Sonne.

Ich sah das Meer.

Ich arbeitete mit dem Töpfer.

Ich schluckte den Staub auf der Landstraße.

Ich sah die Blüten der Melancholie auf dem Feld meines Vaters.

Ich sah den Tod in den Augen meines Freundes. 

Ich streckte die Hand aus nach den Seelen der Ertrunkenen. 

Ich bin müde..."

Thomas Bernard, Na Terra e no Inferno, Lisboa: Assírio & Alvim, 2000, p. 180

domingo, 21 de outubro de 2012

sábado, 20 de outubro de 2012

Schatten



"São feitas de palavras as palavras
e da melancolia da
ausência da prosa e da ausência da poesia.

É o que falta que fala
do lugar do exílio
do sentido e da falta de sentido.

Tudo o que te disser
tudo o que escrever
sou eu a perder-te,

cada palavra entre
o que em mim é corpo
e é nela sopro."


Manuel António Pina, "Nenhuma Palavra e Nenhuma Lembrança", Lisboa: Assírio & Alvim, 1999, p. 50

quinta-feira, 18 de outubro de 2012

Trotzdem...




"(...) uma das coisas que aprendi é que se deve viver apesar de. Apesar de, se deve comer. Apesar de, se deve amar. Apesar de, se deve morrer. Inclusive muitas vezes é o próprio apesar de que nos empurra para a frente. Foi o apesar de que me deu uma angústia que insatisfeita foi a criadora de minha própria vida. Foi apesar de que parei na rua e fiquei olhando para você enquanto você esperava um táxi. E desde logo desejando você, esse teu corpo que nem sequer é bonito, mas é o corpo que eu quero. Mas quero (...) com a alma também. Por isso, não faz mal que você não venha, esperarei quanto tempo for preciso."
 
Clarice Lispector, Uma Aprendizagem ou o Livro dos Prazeres", Lisboa: Relógio D' Água, 1999, p. 22

domingo, 14 de outubro de 2012

Sonntags




numa tarde de domingo,
num parque qualquer de uma tarde de domingo,
deito-me na relva com o corpo enrolado
como se fosse uma colher metida no guarda-
napo. A tarde limpa os beiços com esse
guardanapo de flores, que é o meu vestido
de domingo, e deixa-me nua sob o sol já frio
do outono de uma cidade que pode ser
Munique, Londres, Paris, ou outra qualquer,
como Veneza que não conheço.
As árvores olham para outro sítio,
com os pássaros distraídos com o sol
que está naquela tarde por engano. E eu,
com os dedos presos na relva húmida, vejo
o meu vestido voar, como um guardanapo,
por entre as nuvens brancas de uma tarde
de outono.

(Leituras românticas de "Tempo Livre" de Nuno Júdice)


sábado, 13 de outubro de 2012

Deine Worte... Meine Antwort

 


"Tenho de. O pequeno intervalo entre a minha disponibilidade e a pequena tarefa a realizar. É o meu futuro. Reduzido minúsculo. Não olhes mais longe. Agora o teu futuro é o pequeno passo que dês para fechar as janelas, para abrir as lojas. Agora a tua vida é o instante em que vives. Nada mais, nada mais, mas não te lamentes."
 
Vergílio Ferreira, para sempre, Lisboa: Bertrand Editora, 1984 , p. 159
 
 
 
"O amor é paciente e prestável. Não é invejoso. Não se envaidece nem é orgulhoso. O amor não tem maus modos nem é egoísta. Não se irrita nem pensa mal. O amor não se alegra com uma injustiça causada a alguém, mas alegra-se com a verdade. O amor suporta tudo, acredita sempre, espera smpre e sofre com paciência. O amor é eterno."
 
Primeira Carta aos Coríntios, 13

quarta-feira, 10 de outubro de 2012

Blindheit

 
 
 
"Ao princípio não se sente
O amor - a humidade amanhecendo
O coração ressequido"

Daniel Faria, "Do livro primeiro da noite escura, de São João da Cruz 3", in Poesia, Lisboa: Assírio & Alvim, 2012, p. 221.

sábado, 6 de outubro de 2012

Danken


"Enfim, depois de tanto erro passado
Tantas retaliações, tanto perigo
Eis que ressurge noutro o velho amigo
Nunca perdido, sempre reencontrado.

É bom sentá-lo novamente ao lado
Com olhos que contêm o olhar antigo
Sempre comigo um pouco atribulado
E como sempre singular comigo.

Um bicho igual a mim, simples e humano
Sabendo se mover e comover
E a disfarçar com o meu próprio engano.

O amigo: um ser que a vida não explica
Que só se vai ao ver outro nascer
E o espelho de minha alma multiplica..."


Vinicius de Moraes, Soneto do Amigo, in http://www.viniciusdemoraes.com.br/site/

quinta-feira, 4 de outubro de 2012

Abwarten 1

 
 
 
"A porta mora à espera
De perfil se ensombra
E descansa

O degrau é paciência...
O umbral anúncio
O silêncio é o lugar
Onde baterão as mãos"
 
 
Daniel Faria, "Explicação das casas", in Poesia, Lisboa: Assírio & Alvim, 2012, p. 55

segunda-feira, 1 de outubro de 2012

Tag der Musik





"Pobre velha música!
Não sei por que agrado,
Enche-se de lágrimas
Meu olhar parado.

Recordo outro ouvir-te,
Não sei se te ouvi
Nessa minha infância
Que me lembra em ti.

Com que ânsia tão raiva
Quero aquele outrora!
E eu era feliz? Não sei:
Fui-o outrora agora."


Fernando Pessoa - Poemas Ecolhidos, Selecção e apresentação de Jorge Fazenda Lourenço, Biblioteca Ulisseia, 1985, p. 132

domingo, 30 de setembro de 2012

Selbstportrait



"Este que vês, de cores desprovido,
o meu retrato sem primores é
e dos falsos temores já despido
em sua luz oculta põe a fé.

Do oculto sentido dolorido,
este que vês, lúcido espelho é
e do passado o grito reduzido,
o estrago oculto pela mão da fé.

Oculto nele e nele convertido
do tempo ido escusa o cruel trato,
que o tempo em tudo apaga o sentido;
 
E do meu sonho transformado em acto,
do engano do mundo já despido,
este que vês, é o meu retrato."


Ana Hatherly, A Idade da Escrita, Lisboa, Edições Tema, 1998

quinta-feira, 27 de setembro de 2012

Morgen...




"- Não vejo nada que infunda pavor e apostava tudo como amanhã teremos um lindo dia."

M. Teixeira Gomes, Maria Adelaide, Lisboa: Bertrand Editora, 1992, p. 51

terça-feira, 25 de setembro de 2012

Veränderungen



"O mundo quando não estamos a olhar: as paisagens
mudam de lugar, vão mudando o mundo. Quando
olhamos só os vestígios ficam
da mudança. E não sabemos antes a figura
em que pouco se demoram as paisagens. Só o poema
a dá enigmática e evidente."

Manuel Gusmão, A Terceira Mão, Lisboa: Editorial Caminho, 2007, p. 46

domingo, 23 de setembro de 2012

Er



"O que nele amava não se poderia realizar como uma estrela no peito - sentira tantas vezes o seu próprio coração como uma dura bolha de ar, como um cristal intraduzível. Sobretudo o que nele amava, tão pálido e malicioso, era de uma qualidade impossível, pungente como um agudo desejo ridículo (...). Pensou com surpreendente clareza, usando para si mesma quase palavras: eu o amo como ao que faz bem, ao que dá bem-estar mas não ao que está fora do corpo e que jamais o apaziguará e que se quer alcançar mesmo com a desilusão (...). Doía-lhe porém pensar assim, tanto era terno, pressuroso e cheio de vida alvoroçada ele existir nela, respirar, comer, dormir e não saber que ela poderia pensar assim dele."
 
Clarice Lispector, O Lustre, Lisboa: Relógio D' Água, 2012, p. 190

quinta-feira, 20 de setembro de 2012

Nein!



    "- Daniel ..., murmurou Virgínia, nem com você eu posso falar?
      - Não, disse ele supreendido com a própria resposta.
     Hesitaram um instante, delicados, quietos. Não, não!..., negava ela o medo que se aproximava, como para ganhar tempo antes de se precipitar. Não, não, dizia evitando olhar ao redor. A noite descera, a noite descera. Não se precipitar! mas de repente algo não se conteve e principiou a suceder... Sim, ali mesmo iam-se erguer os vapores da madrugada doentia, pálida, como um fim de dor - enxergava Virgínia de súbito calma, submissa e absorta. Cada galho seco se esconderia sob uma luminosidade de caverna. Aquela terra além das árvores, castrada nos brotos pela queimada, seria vista através da mole neblina, enegrecida e difícil como através de um passado - via ela agora quieta e inexpressiva como sem memória."
 
Clarice Lispector, O Lustre, Lisboa: Relógio D' Água, 2012, p. 11


domingo, 16 de setembro de 2012

Sonst nichts...



      "Sim: não sou mais do que um reflexo dessa tarde, sobrevivendo aos dias e às noites.
    Um eco de todas as vozes e de todos os murmúrios; um reflexo de todas as nuvens e de todas as estrelas; uma aparência revelada de todas as misteriosas aparições, eis o Homem!"


Teixeira de Pascoaes, O Bailado, Colecção "Obras Completas de Teixeira de Pascoaes", organização de Jacinto do Prado Coelho, volume VIII, Livraria Bertrand: Amadora, 1973, p. 36

quinta-feira, 13 de setembro de 2012

Geburtstag



"Era seu destino, uma característica, quer o desejasse quer não, desembocar assim numa ponta de terra que o mar ia lentamente devorando, e aí ficar, como uma ave marinha desolada, só."
 
Virgínia Woolf, Rumo ao farol, Lisboa: Relógio D'Água, 2008, p. 41

quarta-feira, 12 de setembro de 2012

Geheimnis






"Se alguém me tivesse mostrado o futuro, decerto muitas lágrimas teriam sido evitadas. Mas viver sem lágrimas não é viver. O sentido da montagem humana só vem se fizermos como Clarice Lispector e formos ao encontro do que nos espera, na certeza de que tudo na vida tem o estigma da caducidade. Só amar não acaba."
 
Fredrico Lourenço, Amar não acaba, Lisboa: Edições Cotovia, 2004, p. 115

domingo, 9 de setembro de 2012

Begreifen



"Passo a minha mão pela tua cabeça,
recurvamente, atentamente, e só com os dedos brandos,
olhando-a como passa e vendo onde passou.

Quero tanto saber o que tu pensas."

Jorge de Sena, Antologia Poética, Lisboa: Edições Asa, 2001, p. 81

sábado, 8 de setembro de 2012

Preis der Eile


     "O castigo de ser feliz é o tempo passar depressa. O castigo de ser triste é o tempo não passar. A recompensa de não conseguir ser nem triste nem feliz, permanecendo indiferente, é o tempo passar devagar. Se todos os dias nascemos - os que temos a sorte de amar, mais a suspeita de sermos, talvez, amados - todos os dias morremos cedo de mais.
      Se me perguntassem quanto tempo passei com a Maria João, nos últimos 15 anos, eu teria muitas dificuldades em não responder 15 dias ou até 15 minutos, por não saber mostrar e justificar até esse pouco tempo que passámos.
      Ainda ontem acordámos às oito da manhã. Mas, às sete da tarde, apesar de termos passado o dia juntos, pareceu-nos que os tinham roubado o dia inteiro; que tínhamos acabado de nos conhecermos. (...)
      O tempo, a ocasião e a sorte parecem ser coisas parecidas - mas são coisas muito diferentes. O ponto de vista, conforme o lugar onde se esteja e de onde se veja, importa mais do que o sentimento ou o juízo.
      É sinal de ser-se feliz achar que o tempo nos foi roubado e que é pouco o tempo que tivemos e pouco o tempo que nos resta.
      Não se pode dar importância de mais ao presente, seja amoroso, político ou financeiro. A pressa não é uma escolha: é uma consequência. E um preço."
 
 
Miguel Esteves Cardoso, in Jornal Público (in 8 de Junho de 2011)
    

quinta-feira, 6 de setembro de 2012

Sehnsucht


"Não me verga a velhice nem o peso do crâneo
Mas os olhos cansados na dor de te não ver.
O chão tornou-se a última paisagem.
No mais longínquo da terra te levantas
E vejo erguer-se a poeira dos teus pés."

Daniel Faria, "Últimas Explicações", in Poesia, Lisboa: Assírio & Alvim, 2012, p. 98